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O clima pós-moderno

quarta-feira, 22 de março de 2017 Postado por Lindiberg Mustang

Se alguém quiser saber o que se passa na presente fase da história humana chamada “era da incerteza” (uma ideia que permeia o mundo desde a metade do século 20), é obrigado a desenvolver uma habilidade que seja capaz de penetrar e discernir todas as camadas dos discursos pós-modernos — agora rebatizado de “pós-verdade”. Ortega y Gassete dizia que “cada época é como um clima, que predominam certos princípios inspiradores e organizadores da vida”. O período pós-moderno, que vive um momento de luto da razão como instância de significado, é responsável por dar (ou suprimir) sentido ou criar narrativas a toda concepção de mundo  enraizada em alguma certeza ou verdade: não há como ter certeza de nada porque tudo depende de nossa concepção subjetiva sobre a realidade. As pessoas discordam entre si e se dispõem de interpretações profundamente diferentes acerca do que significa viver neste mundo. Este é o princípio organizador de nossa época, nosso “clima”.
A ideia de pluralidade de percepções e de que cada indivíduo dá um significado circunstancial para o modo como olha a vida não é totalmente equivocado, e é coerentemente assentada na filosofia, na literatura, na política, na cultura, e também na teologia — um campo do conhecimento que ainda tenta conservar um status de pureza. Obviamente existe essa dimensão de incerteza da realidade fincada nos paradoxos e tão bem explorados por Nietzsche e Kierkegaard, mas essa concepção não contempla o todo da realidade; é apenas uma camada desta. Platão e Aristóteles captaram esta dinâmica da realidade, no entanto mergulharam mais fundo a ponto de vislumbrar uma unidade nisso tudo; não uma unidade simples, mas unidade do diverso, como em tudo que é real e vivente. Não chegaram a essa conclusão de modo vulgar, pela simples coerência lógica e mecânica, mas como uma tendência, uma disposição da própria diversidade a uma finalidade que tudo abrange.
Pensar o mundo como uma unidade não quer dizer que seja possível uma descrição total da ordem cósmica, pois este ato heróico está para além da estrutura da existência humana — nem mesmo a união de todas as religiões acompanhadas de todas as ciências poderia nos dar a condição de desenvolver uma descrição total da ordem cósmica. A realidade, senhoras e senhores, é formada por tempo, espaço e dimensões cosmológicas que fogem do nosso entendimento. Não obstante, mesmo com uma percepção fragmentada, é inegável não presumir que o Universo constitui alguma ordem que não depende do ser humano, pois é dentro dela que surge o homem; há, sem dúvida, elementos de desordem e de caos, contudo, esses elementos absurdos precisam estar presentes.
Quando não há a possibilidade de se emudecer diante da ordem cósmica, de calar e se abrir para o que existe efetivamente fora de nós, o que resta é profetizar o lamento relativista de que “o homem é que cria a realidade”. Ou seja, essa é aquela perspectiva kantiana de que o olhar é o que determina a imagema ideia de que vemos os objetos, por exemplo, no espaço e no tempo não porque espaço e tempo são partes do próprio mundo, mas porque são partes do nosso aparato humano para conhecerHegel critica essa concepção da epistemologia de Kant afirmando que o indivíduo é essencialmente definido pela capacidade universal da razão e não pela individualidade do sentimento ou da percepção dos sentidos, que isola o indivíduo da esfera objetiva. Ao definir razão, Hegel vai além, entendendo-a como o conjunto das leis do pensamento e criadora da realidade, isto é, o real é obra histórica da razão. Assim, podemos remontar o entendimento dos escolásticos cujo o esforço era alcançar a contemplação da verdade; a noção moderna, ao contrário, se desenvolve e alcança seu ponto de transição no pensamento de Marx com um convite para transformar a realidade — transformar o mundo.
Vale ressaltar que essa foi a tentativa de Marx, totalmente inoperante, de superar o subjetivismo moderno, negando a noção de que a História se move impulsionada por uma dialética que se dava no campo das ideias, como tinha dito Hegel. Marx trabalha com a ideia de que o homem é o homo faber, que descobre sua essência na práxis, fazendo, trabalhando, e não no interior de sua consciência. Na tradição marxista, qualquer reflexão sobre a realidade ou não realidade que se isola da práxis é uma perda de tempo e capricho de metafísicos.
Marx não descarta o componente dialético que move o mundo, no entanto, essa dialética não acontece no domínio das ideias como pensava Hegel, mas no mundo objetivo, entre o senhor feudal e seus servos, entre o patrão e o operário; a única dialética possível porque é fruto do agir humano. O problema é que Marx não chega nesta conclusão agindo objetivamente, trabalhando numa linha de produção ou participando de uma revolução, mas através de um esforço intelectual da própria imaginação; portanto, Marx tenta superar o subjetivismo operando exatamente no campo da subjetividade, tenta mudar o mundo através das conclusões de sua imaginação, antecipando, dessa forma, o que iria ser regra no pensamento pós-moderno.
Desse modo, guiada pela concepção pós-estruturalista — de que a realidade é considerada apenas como uma construção social e subjetiva, em perpétuo devir —, nossa época segue na impossibilidade de compreender o próprio drama em que vivemos.
A premissa básica para essa incompreensão é uma sinistra deformação da linguagem. A aquisição do domínio da linguagem é o elemento fundamental para que se consiga ser fiel a nossa experiência diante do mundo sem se deparar com a ideia posta de que tudo na vida pode ser mera alucinação. Ser fiel a experiência real evita que se reproduza na consciência apenas o que foi introjetado pela cultura e pela sociedade. Na maioria das vezes as pessoas absorvem valores que não correspondem a sua experiência direta, gerando uma cisão entre o indivíduo e sua experiência real. Ora, em todo caso, os elementos culturais nos ajudam a expressar para nós mesmos o que vemos no mundo; o problema é quando se decide em favor da cultura e não da individualidade. Os elementos culturais devem ser usados para as finalidades do indivíduo, servindo-o, caso contrário o indivíduo será assimilado por esses elementos tornando-se apenas um repetidor de frases de efeito, pensando a realidade sempre fora de sua experiência genuína.
O impacto disso é uma linguagem deformada geradora de um discurso que dificilmente alcança a compreensão dos fatos. Discurso é movimento, é transcurso de uma proposição a outra; é uma unidade formal organizada por premissas e conclusão. O discurso sempre deve estar ligado por algum nexo, seja ele lógico, analógico, cronológico, etc., que obviamente suscitará uma modificação no ouvinte por mais breve que seja — aceitar ou rejeitar um discurso é de alguma forma passar por uma modificação. Hoje, sob o clima da pós-modernidade, discurso foi reduzido a definições estranhas como: “dis-curso, desvio de curso”. Essa definição esquisita faz sentido dentro de uma ocasião oportunamente chamada de “pós-verdade”, onde a linguagem já não é mais capaz de expressar sua referência à experiência real.
O discurso, que hoje repousa à sombra de explicações pós-estruturalistas, e que se arrasta de Marx à Foucault — e de Foucautl à filósofos de 140 caracteres —, é incapaz de apreender o real, pois sempre aparece acorrentado a uma escolha ideológica (quando muito são discursos sobre textos que correspondem apenas a outros textos, descartando a experiência real). Assim, o subjetivismo moderno fez do relativismo a única experiência possível, e por isso mesmo é aceito como inquestionável o mantra que diz  que “todo discurso é ideológico e político”; uma ideia que joga no balaio tanto a oratória parlamentar quanto a poesia lírica, tanto uma notícia de jornal quanto o trabalho filosófico sobre metafísica, tanto o conselho moral de um pai para seu filho quanto o relatório de uma empresa a seus funcionários. Tratar as coisas dessa forma e dizer que “todo discurso é ideológico”, que “não há realidade sem ideologia”, é não saber o que é discurso, é não saber o que é realidade e menos ainda ideologia. É o típico mecanismo que reduz todos os discursos ao mesmo nível, sem uma hierarquia de valor; eis nivelamento que geme sob a bota do marxismo.
O problema dos marxistas de nosso tempo é que não leram Marx, que situou com muita precisão a ideologia como uma falsa consciência; uma ferramenta que deforma a realidade, colaborando para certa manutenção de relações de dominação. Ideologia é um pensamento total que tem por ambição explicar tudo de antemão, pois nada tem a aprender porque já sabe demais. Consequentemente, a realidade será mutilada e sempre ajustada ao discurso ideológico. Ora, a realidade não é ideológica, não depende da ideologia e muito menos de nós para ser o que ela é. A realidade, que é permanente, está fora de nós ao mesmo tempo que nos abrange, e como diz Heidegger, toda nossa orientação é guiada por ela, pelas coisas: “na irrupção do humano, nossas pesquisas confrontam as coisas”.
Se afastar de uma mente ideológica não significa abrir mão de nossas próprias perspectivas, e nem mesmo nos impede de assumir que a política pode ser compreendida de muitas maneiras — o que não implica aceitar todas as suas formas ou negligenciar nossas convicções em nome de uma suposta imparcialidade.
Assim, o sentido de ideologia, reinventado por Lênin e Gramsci, se converte numa concepção neutra que constitui qualquer ideário de um grupo de indivíduos. Como vimos acima, há uma tendência na pós-modernidade de mudar o sentido das palavras; se mudam o sentido das palavras a comunicação se torna impossível. Mesmo que se entre no plano de realidade do sujeito ideológico, a comunicação ainda se torna debilitada, pois o apelo à experiência é inútil, porque ele pode usar os mesmos nomes para designar os objetos da experiência, mas ele estará pensando outra coisa.
O sujeito ideológico ajusta a realidade ao seu próprio horizonte de consciência, como um alfaiate, que invés que ajustar o terno do cliente prefere lhe amputar o braço, adaptando a realidade às suas crenças. Ao contrário, é a realidade que nos orienta e, quando ela nos desampara, diz Heidegger: “o Nada nos encurrala, e, na sua presença, toda enunciação do ‘ser’ — tudo aquilo ao qual aplicamos o termo ‘é’ — se silencia”. A ideia aqui não é negar o relativismo, mas entender que este é apenas uma fina camada epidérmica da realidade, e não a totalidade do real. É apenas uma concordância prática, circunstancial, sem a dignidade de um genuíno ideal moral. E quando procura se adornar com uma ideologia autoglorificadora, que se justifica sobretudo como teoria "científica", os discursos mais bizarros se tornam deveras atraentes quando repousam em cabeças como de um Robespierre, de um Lênin ou de num Hitler.
Na cultura, as consequências são incalculáveis, pois ao excluir a moral e o direito natural os maiores absurdos da terra estariam legitimados em nome do relativismo; não haveria nenhuma razão pela qual se deva supor que um sujeito não possa ser morto por ter uma tendência homossexual, ou que um marido não possa bater na sua esposa: levando o relativismo às últimas consequências, qualquer condenação dependeria de fatores absolutamente contingentes.
Em um mundo onde o certo e o errado existem de fato, podemos afirmar com muita tranquilidade que os maridos não podem agredir suas esposas, que uma pessoa não pode ser assassinada por sua tendência sexual e etc. Não há como afirmar a imoralidade desses dois casos e rejeitar a moral. Esse é um paradoxo do qual determinadas filosofias pós-modernas nunca conseguirão escapar, pois elas vivem de ditar regras em cima de preceitos que elas próprias afirmam não existirem.
A pós-modernidade é nosso clima, frio, embaraçoso, insólito, disforme; é sob este clima que precisamos desenvolver uma habilidade que seja capaz de penetrar e discernir as camadas da realidade, tão ocultada pela neblina pós-moderna. Se enfrentada com honestidade, esta tensão será saudável, e a medida que se avança no cerco das ideias a melodia dramática consiste em manter sempre desperta a consciência dos problemas, que são o drama ideal.
Ao ultrapassar a neblina do relativismo pós-moderno, poderemos descer a assuntos mais imediatos, tão imediatos que se conflui com nossa própria vida, como dizia Ortega y Gassete: “a vida de cada um”. Mais ainda, quando se insiste em mergulhar por debaixo do que cada um costuma acreditar que seja sua vida, perfurando-a, vamos nos ingressar em regiões subterrâneas do nosso próprio ser, que permanecem secretas de tanto nos serem íntimas, por serem nosso ser.

©2017 Lindiberg Mustang

A consolação ilusória das multidões

quarta-feira, 23 de novembro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
A cobiça, que é sem dúvida o desejo mais entranhado no homem, e a vontade de poder que dela decorre, são características genuinamente individuais que habita desde tempos pretérito o coração de cada um. Isso se confirma com clareza nas palavras do apóstolo, que diz: “cada um é tentado pela sua própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido” (Tiago 1:14). Dessa forma, esse mal só pode ser discernido individualmente a partir de um confronto aprofundado com o próprio ser, que reconhece na experiência interior a sedução e a cupidez que leva à desordem da alma.
Se por um lado a cobiça tem sua origem no indivíduo, por outro, é na coletividade que ela se legitima — é o corpo social que a exalta. Observamos na massa a totalidade dos indivíduos que produz um acréscimo de poder, no entanto, um corpo social sobrepuja esta expectativa dando um caráter desmedido em relação ao sujeito, e um sentido último, que constrange todo indivíduo e que faz com que somente o corpo social pareça autêntico.
É da coletividade que brota o espírito de poder mais alucinado, onde as consciências se diluem e, por isso mesmo, assumem um ar de verdade absoluta. Assim, a cobiça pessoal de cada indivíduo busca se justificar e se satisfazer numa via aberta para esse corpo social.
Jesus discerne com maestria essa dimensão da coletividade: “Ao ver as multidões, teve compaixão delas, porque estavam aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor” (Mateus 9:36). Nota-se que Jesus não trata com as multidões. Diante delas ele só exala sua compaixão e serenidade. O homem na multidão, envolvido nas massas, é inalcançável na medida em que abraça essa multidão na busca por uma consolação ilusória; a partir daí cria-se um mundo peculiar de sentimentos e tudo que se faz é reforçar esses sentimentos.
O indivíduo que se submete a uma massificação internaliza constantemente a ilusão de que continua indivíduo, mas não tem condições de afirmar a sua prerrogativa individual. Assim, a multidão é incapaz de expressar até mesmo uma visão de mundo — no máximo expressam uma intersolidariedade grupal. Esse delírio é nossa condição diante da proliferação demográfica e no inferno das cidades aplacado pelos discursos sobre democracia.
Dizia Chaplin que a multidão é um monstro sem cabeça, e Mateus 9:36 narra que Jesus encontra uma multidão aflita e exausta, sem nenhuma razão em si, nenhuma verdade, nenhuma mensagem, à mercê do primeiro louco, do mau pastor, do líder político, de um mito… Além da miséria contingencial que envolve as massas, Jesus se atenta justamente para esse potencial de horror quando as más autoridades tomam o controle. O povo ensandecido se inclina facilmente a lamber botas de autoridades, a erguer ídolos pra si, a prestar culto a salvadores da pátria. Freud dizia que a assustadora irracionalidade dos seres humanos emerge de grandes grupos e que as profundas forças libidinais de desejo (forças do amor) são entregues ao lider, enquanto os instintos agressivos (ódio) são dirigidos aos que estão fora do grupo (claro, há controvérsias sobre o conteúdo da explicação freudiana, mas na prática é justamente isso que acontece).
O Filho do homem não é mestre de multidões, não se torna líder delas; não se mete a dirigir o que é ingovernável (e esse é o elemento paradoxal que torna a massa mais facilmente domesticável), pois sabe que ao se colocar na liderança de uma multidão, efetivamente, faria com que cada homem se despojasse mais ainda de sua individualidade própria. Como afirmou Kierkegaard: “A multidão é a mentira. Cristo foi crucificado porque não queria se envolver com a multidão (ainda que ele se dirigisse a todos), mas queria ser o que ele era: a verdade que se relaciona com o indivíduo singular”. Caso contrário, a multidão seria reafirmada contundentemente em seu “estado de multidão”, inexistente e destituída de significado.
A máxima nietzschiana “nenhum pastor, um só rebanho”, é o último estágio do homem desolado. Mário Ferreira dos Santos comenta essa frase dizendo que nesse caso o líder é apenas a projeção da própria multidão: “O líder é líder porque segue à frente da multidão e a multidão segue-o porquê ele se coloca à sua frente. O líder é um produto da massa que se torna um rebanho sem pastor, porque não é conduzida. Na verdade, ela conduz o líder, que teme não ter acompanhantes. Esse é o estágio de que fala Nietzsche”.
O mecanismo básico das mentalidades das massas é irracional; a multidão não é guiada pelas mentes que a compõe, mas pelos seus instintos. Há inúmeras causas envolvidas nas decisões humanas, não somente entre indivíduos, mas principalmente entre os grupos. Qualquer informação bem colocada, principalmente quando associadas a alguma imagem estonteante, tocará as emoções irracionais das pessoas, dirigindo todo o comportamento das multidões — ao ponto de fazê-las apoiar uma guerra ou desejar uma coca-cola; tudo isso através de coisas irrelevantes que podem se tornar fortes símbolos emocionais. Ainda no século 19, Kierkegaard já entendia que “não há arte alguma em ganhar uma multidão; tudo o que é preciso é a não-verdade e um pouco de conhecimento das paixões humanas”. A publicidade, claro, foi um dos setores do mercado que melhor entendeu isso quando faz essa conexão emocional entre um produto ou serviço.
A mensagem do mestre de Nazaré desconstrói as bases de todo corpo social muito bem engajado. Por isso a boa nova de Cristo parece terrível para nós que vivemos nesta sociedade de massa, repetindo as mesmas coisas que o grupo está dizendo, arrolados nos mesmos sentimentos e facilmente mobilizados para determinada organização política, social, religiosa, etc. Neste sentido, as massas se tornaram a verdade, o poder e a honra, um tipo de deus — em suma, a ascensão do poder do “numérico” é a principal fonte do mal no mundo moderno, que se arrasta até nossos dias, desde Sócrates e Jesus, que foram vítimas do “numérico”, da “multidão”.
Presenciamos este fenômeno trágico onde cada conglomerado se reduz a um número, e se satisfaz em ser assim. O Evangelho é precisamente a Luz onde cada um pode encontrar sentido fora da massa, onde cada indivíduo pode discernir o caos dessa sociedade enlouquecida. Portanto, o famoso grito de protesto socialista que diz "trabalhadores do mundo, uni-vos!", não passa de uma armadilha dantesca para a consciência individual. Essa “união” não passa de uma adesão dissimulada a um espírito de manada, atraente para a alma covarde, no entanto, indigestível para aquele que sabe que lhe custará a supressão do fator Indivíduo.
Por isso, senhoras e senhores, os discípulos de Jesus são orientados não a enquadrar a multidão, mas dispersa-las, promovendo a vertigem da liberdade nas consciências mais corajosas.
Quem ousa realmente se levantar como uma testemunha da verdade não se abstém de atacar a multidão, pois é um componente indispensável para um profeta, um apóstolo, um mártir. Envolve-se, se possível, com todos, mas sempre individualmente, falando a cada pessoa, uma por vez, nas ruas, nos becos, como insiste Kierkegaard, a fim de dispersá-la.


©2016 Lindiberg Mustang

O que é arte?

sexta-feira, 7 de outubro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
O que faz de algo uma obra prima? O que é arte? Bem, até o século 19 as respostas poderiam ser bem convencionais, todas aprovadas por um fator essencial da experiência humana: o êxtase, o devaneio, o arrebatamento íntimo, o sentimento que elevava o ser ao Eterno; era a iniciativa pela qual o indivíduo, amparado pelas mãos dos deuses, se anunciava ao mundo.
Foi no século passado que toda proclamação de valor estético caiu no vazio do relativismo. Depois de expor um urinol como obra de arte, intitulado como A Fonte, Marcel Duchamp espalhou um resíduo de ceticismo e muita gente começou a se perguntar: “O que de fato é arte?”. Desde então as respostas para essa pergunta começou a transitar entre o sublime e o vulgar, entre o admirável e o trivial. Em um mundo em que a afluência artística que tinha em si o brilho da beleza, a arte chega ao século 20 ofuscada pela piada de Duchamp.
Particularmente penso em arte como uma unidade composta por forma e conteúdo. Explico: como pensava Aristóteles, forma não se reduz a uma mera figura externa das coisas, mas é o princípio da sua própria funcionalidade. Forma seria então a estética de uma obra, são os traços de um desenho ou o contorno de uma pintura; é a estrutura da composição de uma música ou todo arcabouço de um filme; é a métrica de uma poesia ou o busto de uma escultura. O conteúdo, por outro lado, é o que dá o aspecto dialogal de cada obra; são os meios estéticos de expressão que se organiza em função de seu efeito artístico. O conteúdo é o que o artista quer passar, é a sua mensagem; é todo o aspecto dramático da obra em que o artista arrisca a vida para dar existência a sua criação. 

Para Nietzsche, de tudo quanto se escreve só vale a pena se deter naquilo que é escrito com o próprio sangue. Eu diria que na arte não é diferente; o sangue é símbolo dionisíaco, significa vontade; símbolo também da vida. Escrever com essa vida significa a própria elevação do espírito, que possibilita estar à frente de todos, de antecipar situações e tendências. Isto acontece quando o artista transforma a situação em que vive na situação de sua própria época, tornando a obra não somente um comentário de seu tempo, mas também um comentário sobre todas as épocas, universalizando o que há de comum na história humana.
Ora, nem sempre é possível contemplar de imediato a forma e o conteúdo em perfeita harmonia numa obra. Às vezes o conteúdo se apresenta fixada numa forma embaraçosa, onde as imperfeições estéticas são as condições humanas da obra falar — prefigurando a própria beleza da obra.
Dessa forma, o que impressiona nas músicas de Bob Dylan não são seus simples acordes acompanhado de uma fonografia indefinida; o que nos surpreende nos filmes de Stanley Kubrick não é seu perfeccionismo já há muito ultrapassado pela tecnologia atual; o que assombra nos romances de Dostoievski não é o niilismo que parece engolir todo mundo. Não. Nada disso fica em pé diante da profunda experiência que emana do conteúdo dos trabalhos desses gênios, atulhado de angústia, solidão, orgulho, loucura, morte.
É assim que a arte cumpre seu papel funcional no mundo, inspirando, consolando, elevando o espírito ou comunicando o desprezo, a decadência e a humilhação. Tudo isso através da caneta, dos pinceis, da argila, da tinta, das imagens, dos sons, dos acordes, do movimento, da dança, etc.
Entretanto, só se pode perceber a função da arte quando se entende o conflito entre forma e conteúdo; e isso só é possível na medida em que o conteúdo sobrepõe à forma. É nesse momento que a redenção brada mais alto que as imperfeições estéticas, revelando que a supremacia do Bem prevalece sobre a desordem que arrasta para baixo toda dignidade humana. Assim, a arte oferece sempre uma arriscada travessia que vai das determinações mais baixas e aponta para uma dimensão sublime da realidade. Essa travessia não é possível para pessoas que mal sabem suas próprias opiniões sobre a natureza humana, ou seu lugar dentro da História; não é possível nem mesmo para uma elite que é incapaz de encontrar o sublime na fragilidade do grotesco.
Foi Paulo Brabo que me fez entender que o sublime estampado no grotesco também nos lembra de que somos gente, com nossas falhas e deformidades, revelando a crueza de nossas funções biológicas como a fome, a cede, o suor, o arroto, o peido — elementos estes que para a superficialidade do orgulho humano apenas nos distrai da ideia de eternidade. Ledo engano.
Não se trata de elevar essas necessidades primárias do homem, mas de entender que o sublime também pode ser encontrado no grotesco justamente porque este evoca o ciclo da vida e morte das coisas. E isso o homem urbano sofisticado não acolhe porque trata de uma realidade que arranca o sujeito da ideia de transcendência jogando-o na esfera do temporal, do relativo, do constrangedor, do indecoroso, do hic et nunc. Aqui o sublime se apresenta quando a beleza faz dessas coisas uma abertura para se vislumbrar algo mais elevado, que vai além do temporal. É a travessia que seguimos juntos com o artista da terra ao céu, do inferno ao paraíso que começa justamente na nossa decadência fisiológica.
Como Paulo Brabo deixa claro, essa é a ideia embutida na literatura de cordel: “O cordel é anguloso, despretensioso, barato, escatológico, relaxado, inferior, almeja o popular – sua mensagem é: posso estar na mão de todos”. Seu conteúdo é a de explicitar uma genuína participação que vai além dos anseios padronizados pela cultura. Ora, a beleza também é graça divina acessível a todos os homens e pensar o contrário é negligenciar sua natureza subversiva.
Diferente de cada criação da Apple, seja um dispositivo ou um anúncio, que fala de um ideal sofisticado, elegante, superior, distinto e sem arestas — com sua mensagem: posso estar na mão de poucos —, o cordel, grotesco, carregado de uma estética defeituosa, replicando tragédia, outrora comédia, representa igualmente a necessidade humana de consolo e harmonia; aquela ânsia da alma pela ordem que se alimenta precisamente do valor último que essas obras indicam. Nesse caso, o cordel indica, ou nas palavras de Paulo Brabo: “ilustra um modo subversivo de ler o mundo, um modo que fala de espaços abertos, temporários e sociais — festas populares, feiras e circos mais do que casas e shoppings”. Ou seja, exala um conteúdo que evidencia esse valor último que evoca o sentimento de participação numa comunidade.
É singular o fato da beleza repousar justamente naquilo que se universaliza no homem. Não por acaso a graça, “que se manifestou a todos os homens” (Tt 2.11), é atrelado ao conceito de beleza.
Quanto a verdadeira obra de arte, ela não só é uma expressão da vida moral, mas também o resultado de uma luta interior em que o objeto artístico se torna algo muito além da intenção do artista. É aquela situação em que o artista produz algo maior que a si mesmo, transcendendo suas sensações básicas e imediatas — uma missão que até os anônimos cordeis também cumprem. Afinal de contas, a expressão artística mais elevada não é aquela onde a perfeição estética fala mais alto, e sim aquela em que o Bem fala mais alto. E quando o Bem fala mais alto o horror desaparece sob o luz da beleza.
©2016 Lindiberg Mustang

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A relação entre palavra e imagem

terça-feira, 6 de setembro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang

Há milênios a literatura se arrisca a fazer uma releitura exemplar da realidade humana. Os romancistas com suas obras de ficção conseguiram expressar, até mais que os filósofos, um critério do real que ultrapassaram o seu tempo. Aliás, não só o seu tempo, mas o tempo. Apesar de cada obra de arte ter sua data de nascimento, ela se torna atemporal ao nos fazer apreender a eternidade naquele lapso de segundos em que nossa alma se abre para verdades até então ocultas.
Essa é a experiência quando se fita os olhos com profundidade em obras como de Homero, Dante, Shakespeare, Dostoievski, Kafka, etc. São histórias com aquela ousadia de uma narrativa sofisticada, que também nos ajuda a criar nossas próprias narrativas, clareando diante de nós nossos próprios dramas.
O cinema, sobreposto à literatura, também nos orienta diante de nuances da realidade para uma compreensão melhor da vida e da natureza humana. É isso que aponta filmes como 2001-Uma odisseia no espaço (1968), O poderoso chefão (1972), Laranja mecânica (1971), Blade Runner – O caçador de androides (1982), Clube da luta (1999), A vila (2004), Na natureza selvagem (2007), Watchmen (2009), O homem duplicado (2014), Mad Max – Estrada da fúria (2015), O regresso (2016). Contudo, como pontua Martim Vasques da Cunha, existe uma hierarquia sobre o assunto: “uma coisa é literatura; a outra são produtos derivados como o cinema e as séries de TV. A primeira é uma experiência que estimula a interioridade; a segunda atiça, em sua maioria, os sentidos da visão e da audição, mas também permite um diálogo frutífero entre a imagem e a palavra escrita”.
Quando cultivamos esse intercâmbio entre a palavra e imagem, podemos contemplar no cinema uma espécie de espelho da modernidade que revela o que há de mais belo — assim como o que há de mais traumático — na humanidade; A lista de Schindler, de 1993, por exemplo, retrata estes dois aspectos ao exibir a luta interior de um homem que se nega a fazer parte, mesmo de forma passiva, de um dos maiores genocídios da história. Schindler é o homem que discerniu a realidade do bem e do mal; o homem que não se permitiu ser massa; o homem que preservou as determinações de sua consciência individual mesmo pondo em risco sua própria vida.
É desse modo que o mundo cinematográfico se constitui como uma dimensão profunda da arte, captando os movimentos invisíveis do espirito. Apesar de a imagem ser atraente por sua fácil assimilação, elas ultrapassam a concepção vulgar de meras sequências de imagens para fins de entretenimento.
Cineastas como Stanley Kubrick, Martim Scosese, Woody Allen, os irmãos Coen, Quentin Tarantino, Francis Copola, Clint Eastwood, etc., são gênios do suspense, do mistério, da dissimulação, que gera no espectador experiências únicas através de visuais estonteantes e personagens caricatos moldados por histórias que às vezes dão um nó no cérebro. Apresentam-nos dramas de personagens que poderiam acontecer com qualquer um de nós.
Na literatura, obviamente, o leitor é convidado a fazer um esforço de imaginação para contemplar cada detalhe do que se lê. É necessário uma preparação da memória, da fantasia e da expressão verbal correspondente para ser capaz de sondar o mundo de experiências que está por baixo de cada trama, de cada relação e de cada evento. Por outro lado, diante do universo audiovisual, boa parte desse esforço é dispensável, pois salta aos olhos e ouvidos um conjunto abundante de experiência deixando para o sujeito apenas o zelo de criar uma relação lógica dos fatos ocorridos.
Diante de uma época onde o espetáculo é consumido 24 horas por dia, orientado pela publicidade, pela mídia, pelo marketing, a sedução da imagem fala mais alto que a sutileza das letras. Preferimos o encantamento dos simulacros a ter de encarar o teatro perturbador de Shakespeare. Temos de fazer um retorno aos clássicos da literatura mundial, um verdadeiro diálogo com os mortos, e experimentar todas as mortes narradas tanto por poetas, escritores, roteiristas e quem mais queira entrar neste ofício. Assim, poderá haver um diálogo vibrante entre imagem e a palavra. Um diálogo que cria em nós uma abertura para uma viagem da alma. Uma viagem com todas as volubilidades de qualquer viagem; às vezes negra e gelada, às vezes bela como um dia de sol.
©2016 Lindiberg Mustang
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O que é arte?

Um baile de sombras

domingo, 7 de agosto de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
Quando imitamos alguém isso revela um profundo desejo de querer ser essa pessoa. Ou seja, de viver, entender, ou internalizar as mesmas experiências que moldaram tal personalidade. De algum modo todos nós passamos por isso, quando lemos uma biografia, ou quando ouvimos algum músico, ou até mesmo quando assistimos a um filme. A imitação como um amparo instrumental é essencial para o aprendizado seja do que for, e de forma mais densa, nos leva à maturidade; é o que se passa quando encaramos pensamentos de gente como Nietzsche, Tolstoi ou um Chesterton da vida.
O problema é que a falta de caráter de nossa época tem produzido quilos e quilos de sujeitos que se contentam apenas com a imitação enquanto tal — elas não querem participar do mesmo drama, não querem ser, elas só querem parecer —, não acreditando na realidade mas apenas na encenação. Isso me lembra Machado de Assis em seu conto A teoria do medalhão, onde um pai aconselha seu filho dizendo que o que é realmente valioso é a aparência. Assim, o autor demonstra o caráter artificial dos círculos da sociedade em que ele mesmo viveu.
Hermann von Keyserling, filósofo alemão que passou parte de sua vida viajando pelo mundo, ao chegar no Brasil constata em seu diário esse mesmo fenômeno entre a elite brasileira. Ele concluiu que os brasileiros se satisfaziam tranquilamente se colocando no mundo apenas como simulacros: uma cópia imperfeita do que é real.
Isto nos explica muita coisa, porque é justamente esse comportamento que observamos em todas as dimensões de nossa cultura. Praticamente importamos todo tipo de ideias dos gringos: as músicas, programas de TV, enredos de novelas, gírias, moda, modinhas de rede social, etc. Com a diferença que tudo nos chega como uma cópia mal feita.
Tomemos rapidamente como exemplo o mundo gospel da metade do século XX até hoje. Importamos o neopentecostalismo com o mesmo formato de pregações e as mesmas ênfases na administração, na entonação da voz, no dinheiro, no sucesso. A imitação foi tão bem sucedida que não parou aí. A música gospel, sempre no lugar comum, recheado de bandas e artistas como Diante do Trono, André Valadão, David Quilan, Talles, Fernandinho, Aline Barros, parece ser repetições ou até mesmo plágio de bandas e artistas como Hillsong United, Planetshakers, Lifehouse, U2, Toby Mac, Jeremery Camp, Brooke Fraser, etc. Não questiono o talento desses músicos, mas a coisa é tão mal feita, que introduções musicais, riffs, solos, efeitos, performace, tudo isso chega aqui com adaptações e simplesmente estacionam nesse lugar comum. Não há uma busca por uma identidade ou originalidade. É apenas a imitação pela imitação.
A imitação deve ser cultivada como instrumento pedagógico para a aquisição de uma habilidade em que se possa encontrar a própria identidade do indivíduo. Mas em terras tupiniquins, a imitação se transformou num recurso para se atingir apenas o brilho social — é o mimetismo em sua função mais vulgar, que decorre do simples fato de seus meios serem, ao mesmo tempo, o seu fim.
Há de se abandonar esse culto à imagem e ao espetáculo das representações, pois como afirma Debord, o espetáculo “não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo”. A construção de uma identidade própria a partir da imitação mimética é essencial para evitar que o sujeito não seja consumido por uma falsa consciência. Assim, essa identidade não será apenas a impressão que você quer dar, mas também uma expressão real do que você é.
Mas as pessoas, os brasileiros, eu, tu, ele, nós, vós, eles, vivem numa espécie de palco de teatro e tudo que sabem é atuar. Habitam o mundo contemplando as estrelas como se o ser humano se encontrasse abandonado às traças divinas, sem forças para escalar até o céu na busca de algumas respostas. Como o mendigo do romance Quincas Borba, de Machado de Assis, estirado nos degraus da igreja fitando o céu como se quisesse dizer: “Afinal, não me hás de cair em cima”. E o céu: “Nem tu me hás de escalar”.
Neste mundo abandonado por nós mesmos somente os corajosos encontram respostas. Somente os bravos conseguem ultrapassar esse jogo de imitações para alcançar a serenidade do ser. A imitação deve ser superada pela força da personalidade individual, caso contrário, continuaremos a admirar toda a vida social ser determinada por esse baile de sombras que se tornou nosso país, cheia de pessoas famintas por títulos, cargos, dinheiro e sucesso; constroem um edifício emocional insustentável como finalidade da existência humana, transformando a vida numa triste narrativa sobre a terra; tudo isso entorpece a alma e nubla nossas percepções sobre a bondade e a verdade.
Penso que a vida humana não precisa ser um teatrinho, que pode ser integralmente real, que um homem pode passar do autoengano das imitações para uma existência verdadeira. Pois é assim que o mundo é vencido: pela firmeza de pessoas que não se deixam levar pelo fascínio das encenações. Fascínio este que se assemelha a um abismo de espelhos, que paralisa, e dificulta uma verdadeira comunicação entre o próximo, porque é disto que se trata também.
Falar sobre isso é complicado se considerarmos que estamos inseridos numa sociedade industrial que produz infelicidade generalizada e felicidade superficial em igual modo. O drama da sociedade atual é que o comportamento de massa dá origem a vidas de massa, gerando uma existência efêmera que produz um ser covarde. Segundo Heidegger, só poderíamos ir além das máscaras eliminando o acidental e o trivial, concentrando-nos no cerne do ser humano; ou seja, tendo consciência de nossa finitude e nos libertando da superficialidade que a vida nos apresenta. Dessa liberdade brota coisas importantíssimas. Verdadeiros milagres, como por exemplo, a gentileza com o próximo, a sinceridade com nós mesmos, ou a lucidez necessária para se discernir as sombras.
©2016 Lindiberg Mustang
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Fé e razão, entre a loucura e a inteligência

sábado, 7 de maio de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
Entendo a fé como o maior de todos os saltos; um salto para as camadas mais profundas da existência na angustiante tentativa de criar uma abertura no universo para tocar o infinito. Louis Lavelle declara que isso é uma dialética permanente a unidade da autoconsciência. Uma experiência tão cheia de sentido que suprime qualquer hiato entre a realidade e a idealidade.
Assim, é um erro compreender a fé como um mero símbolo de barganha para conseguir os favores de Deus. Os cristãos abandonaram o sentido — e consequentemente a experiência — existencial da fé contida nas Escrituras, assimilando-a a ajuntamentos cada vez maiores nas igrejas, todos orientados na mesma direção e arrolados no mesmo engano; transformaram a fé em sinônimo de conquistas financeiras, numa relação de posse e egoísmo, de obediência aos usos e costumes, aos dogmas, quando na verdade é o oposto disso; ou seja, uma viagem para as determinações mais profundas da existência tendo exclusivamente a implicação do encontro com o Eterno. Trata-se não só de seguir uma verdade, mas de experimentá-la, e vive-la até as últimas consequências.
Lavelle nos faz entender que essa não é uma experiência permanente  é rápido e embaraçoso; "são momentos privilegiados que parece que o Universo se ilumina e afigura-se como se nós mesmos tivesse escolhido nosso destino; depois o Universo volta a se fechar e logo tornamo-nos novamente solitários e miseráveis". Portanto, a sabedoria consiste em fazer permanecer em nossa memória esses momentos paradoxais e construindo sobre eles a trama da nossa existência quotidiana, e por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito.
A confusão em apreender a fé reside em confundi-la com crença. Ellul, que faz uma lúcida distinção entre fé e crença, me convenceu de que crenças são meras insígnias e práticas que no final apenas atrapalha o grande passo para a fé. A crença turva nossa percepção de Deus transformando-o num ídolo, isto é, numa força a ser manipulada e temida. A fé, como deixa claro Kierkegaard, “é um incrível paradoxo capaz de transformar um crime em um ato santo agradável a Deus; paradoxo que não pode ser reduzido a qualquer raciocínio, pois principia exatamente onde termina a razão”. Dessa forma, Kierkegaard relaciona a fé à maior paixão humana, “uma relação absoluta com o Absoluto”.
Quem abraça a fé abraça também o desconforto, a insegurança e a dúvida, pois é um movimento que o deixa sozinho com um Deus que talvez pode não estar lá. Logo, a razão não serve mais como um guia, porque ainda está emaranhada pelos limites estabelecidos da cultura e da sociedade. Abraão não se deixou levar pelos elementos culturais ou os valores éticos de sua época ao decidir sacrificar seu próprio filho. O pai da fé se lançou de imediato em direção ao paradoxo da vida. Por amor a Deus, e de modo idêntico, por amor a si mesmo.
A fé é um milagre e ninguém está excluído dela, entretanto, não é conveniente dizer que os filósofos gregos deram o salto da fé. Porém, podemos acatar o esclarecimento de Eric Voegelin, que afirma que através de uma ordem noética os gregos tiveram o salto no ser. Sócrates fez o movimento infinito sob o critério intelectual, puramente cognitivo. Neste caso, a razão se torna a simples tendência da inteligência humana em direção ao fundamento, ou seja, a ordem divina. Para Platão, a realidade não pode ser desprovida de um alicerce transcendente, pois seria impossível pensar logicamente sem as determinações dos princípios universais. Isso é importante, e chegar aonde eles chegaram já é uma tarefa bastante elevada para as forças humanas; contudo, não seria possível abrir essa perspectiva sem o toque divino.
Os gregos entendiam a razão como o espírito, portanto, tudo que daí procede já nasce fechado para os limites da razão. Logo, a fé proposta pelo Evangelho, para eles era filosoficamente loucura, um suicídio intelectual. Platão e Aristóteles foram aos limites da razão na tentativa de esclarecer a realidade conceitualmente, através de definições e explicações. Segundo esse modo de encarar o mundo é possível dissecar a realidade a partir de um refinamento constante dos conceitos de que trata, tendo sempre a razão como a ferramenta que baliza e orienta o indivíduo na busca da verdade.
A questão é que o Evangelho estabelece um novo sentido para o que seja a verdade; eis a grande loucura do Evangelho: a verdade não pode ser depurada, corrigida, não pode ser dividida ou sequestrada pela retórica, pois não se trata de um conceito e sim de uma Pessoa. Não se trata de aderir a uma “doutrina cristã”, mas de confiar numa pessoa que se comunica com você. Então, não há outro modo de compreender e discernir a verdade a não ser através da fé. Por isso Paulo nos guia a seguir a verdade em amor; ou seja, trata-se seguir a verdade, e não de adotar um sistema de doutrinas ou teorias obcecadas pela perfeita formulação conceitual. Seguir a verdade é o mesmo que “seguir Jesus” — e viver todas as consequências dessa escolha.
Ainda assim, é preciso deixar claro que o salto da fé não exclui a razão, não é um movimento irracional preenchido de uma realidade abstrata. A fé assimila a razão formando uma unidade na consciência, reconhecendo o Definitivo em sua verdade incontestável. Portanto, a fé é a presença cada vez mais clara da realidade, não aceita nada imposto de fora; encara tudo com a máxima seriedade em face daquilo que é permanente, da eternidade, e em última instância, daquilo que é decisivo. Tudo que é transitório será olhado à luz do que é definitivo.
Diante disso temos duas escolhas: aceitar o refúgio da crença como um escape da realidade, como consequência da nossa busca natural por proteção, ou ser inundado pela fé e viver como um andante na existência, e não como um pedestre.
©2016 Lindiberg Mustang
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Meu mundo ideal

domingo, 21 de fevereiro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
A noção de se reencarnar me parece demasiadamente infantil — uma hemodiálise existencial sem qualquer racionalidade metafísica. No entanto, o pensamento de voltar ao passado sempre me perturbou. Minha imaginação já fabricou ideias fantásticas sobre esse tema. Admito, voltar ao passado é minha obsessão. Mas não aquele passado medieval ou renascentista — estes também me causam certo saudosismo —, mas aquele passado da minha infância, onde as ideias pareciam ser mais originais; onde os cortes de cabelos eram menos extravagantes e vagarosamente mais ousados; os shorts da molecada eram todos acima dos joelhos e deixava uma sensação de mais liberdade; sem contar com aquelas excêntricas roupas que coloriam a cidade na pequena pracinha aos finais de semana.
Minha infância é meu mundo ideal, e como disse Paulo Brabo: “O presente, senhoras e senhores, é uma afronta e uma piada. Somos a continuação medíocre, a parte 2 que o bom senso não deveria ter deixado chegar aos cinemas. Somos o capítulo mais fraquinho de uma série de ficção científica que o roteirista não tem mais criatividade ou saco para terminar”. Algo como The Walking Dead ou Lost.
O presente não é meu mundo. Isso porque o presente parece ser o lugar nenhum: o nada é o fruto dessa pós-modernidade. A modernidade fracassou em querer resolver os problemas da humanidade; inseriu no mundo deuses como a Ciência, a Política, a Natureza, a História. Por isso acho equivocada a concepção popular de que o homem moderno se tornou completamente secularizado. Invés disso, acredito que criou apenas novas expressões religiosas. Não é de se espantar que nossa civilização, na ânsia de superar o discurso religioso — tido como uma ideia atrasada e obsoleta —, se desague em pleno século 21 prestando culto à extraterrestres (os deuses astronautas do History Chanel) e cristais “mágicos” do movimento New Age. 

O que dizer de Einstein, Heisemberg e Planck? Onde estão homens como Freud, Jung e Husserl, que conseguiam discernir o mundo? O que eles nos ensinam hoje? Coisa nenhuma, pois os trocamos por fast-foods, iPhones e redes sociais. Tudo isso, aparentemente, atende perfeitamente as condições necessárias da imaginação moderna, nublada por crenças grosseiras que substitui a angústia de um desejo autenticamente espiritual.
Como pensava o filósofo Edmund Burke, o verdadeiro pacto social é estabelecido entre os mortos, os vivos e os que ainda estão por nascer. O que gente moderninha não entende é que, quando os mortos não valem nada, ninguém vale nada. É o respeito pelo passado que nos faz caminhar decentemente para o futuro. O século 21 nasce habitado por gente que acredita que o mundo em que elas vivem nasceu prontinho; caminham sobre a história desconhecendo e desrespeitando o passado, incapazes de perceber que a ordem social se estabelece no tipo de mundo que você recebe dos seus pais e avós e o tipo de mundo que você entrega para seus filhos e netos.
Não se enganem, o futuro é uma distopia e se reencarnar seria o pior de todos os tormentos. É acreditando nisso que faz meu pai viver longe desse padrão de vida que orienta o consumo de todos hoje em dia. Meu pai ainda hoje — apesar de morar na capital tocantinense — prefere levar a vida de forma simples, andando na mesma bicicleta a mais de vinte anos, fazendo as próprias refeições, usando seu celular exclusivamente para fazer ligações, e raramente chega a perder um episódio d’A Praça é Nossa; os maiores valores que me ensinou foram através do exemplo — porque é assim que tem que ser — e sem muitas palavras.
Assim, meu apelo neste mundo é exclusivamente por independência, para que, assim como meu pai, todos busquem sua liberdade e não se deixem escravizar por trivialidades sem sentido e, finalmente, para que as pessoas façam suas conexões uns com os outros — como se fazia antes da internet, quando todos entendiam que viver era melhor do que postar. Não sou ingênuo o bastante para achar que isso vai acontecer. Bem, talvez essa seja minha irresistível obsessão de querer voltar ao passado.
©2016 Lindiberg Mustang

Funk, a cultura do horror

terça-feira, 19 de janeiro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
Ao ler alguns textos em defesa do funk carioca, percebo que as conclusões sempre se desembocam em duas premissas: I) funk é cultura igual todas as outras; II) criticar o funk como expressão musical de muito mau gosto e chulo, é nada mais do que racismo.
Leitores, leitoras e indecisos, não há problema em identificar o funk como uma manifestação cultural. Segundo o primatologista holandês Frans de Waal, até os símios são reconhecidos por suas expressões culturais — que dirá um funkeiro. Ou seja, o problema é identificá-lo como uma expressão cultural no mesmo plano de todas as outras. Para os vampiros do politicamente correto, Chico Buarque é um gênio da música, no entanto, ele não é melhor que Mc Carol (WHAT?), pois “sua genialidade depende de qual é o grupo social/cultural que o avalia”. Dessa forma, é impossível dizer quem é melhor culturalmente.
Ora, no campo do entretenimento, o funk se evidencia como qualquer outro produto musical a ser consumido. Nesta dimensão, Chico Buarque não é diferente nem mesmo do mofado fenômeno Mr. Catra, pois os dois produzem algo ao gosto do freguês. A dificuldade de compreensão sobre este assunto reside na atitude de querer elevar o funk, igualando-o à bossa nova, por exemplo, num sentido de valor. Para os defensores do funk, a ideia de “qualidade cultural nada mais é que uma utopia vinculada às subjetividades dos agentes avaliadores”. Essa concepção, levada às últimas consequências, cai como uma manga podre no chão de um relativismo completamente irrefletido, chegando as raias da indecência de promover o funk a algo sumamente “belo” — é por isso que só quem não é do ramo ainda leva as ciências humanas 100% a sério.
A beleza não pode ser concebida como algo relativo. Não é como uma laranja que, entrando em contato com o paladar, se revela azeda para uma pessoa e suavemente doce para outra. A beleza é uma intensa fricção com a realidade e aloja um valor em si mesmo, um valor tão importante quanto a verdade ou o amor; transcende nossas aspirações subjetivas, se evidenciando também numa necessidade universal do ser humano. Ou seja, o belo é belo independente de nossa compreensão sobre este fenômeno; assim, quando alguém ler Shakespeare e não gosta, o problema nunca está em Shakespeare, pois ali se expressa uma realidade universal que toca no cerne da alma humana, gerando uma singular disposição para coisas mais elevadas. Isso só pode ser percebido através de um exercício contemplativo, porque vai além de uma orientação de entretenimento.
Talvez Shakespeare não tenha sido um homem melhor — algo que duvido muito — que Mr. Catra, pois ambos estão debaixo da mesma condição humana. Porém, Shakespeare produziu algo maior que si mesmo, assim como Tom Jobim; foram além da simples criatividade, conseguindo mostrar o real sob a luz do ideal. Essa é a característica de um verdadeiro artista: realizar algo que transcende suas próprias paixões; fazer de seus tormentos existenciais, limitações e deficiências a mais bela expressão do Eterno. Certamente, é neste ponto que reside o que poderia ser chamado de “qualidade cultural”.
Na medida em que a democracia gerou o prenúncio desagradável de que é ameaçador julgar o gosto de outra pessoa, este assunto começa a ser deveras aborrecedor. No entanto, o relativismo cultural, de achar que o funk tem em si o mesmo valor artístico de uma música clássica, ignora qualquer critério das tradições artísticas de nossa cultura. O funk aliena-se como um fenômeno de sua própria época ao rejeitar o retorno às raízes mais profundas da tradição ocidental, sendo incapaz de ter qualquer diálogo com grandes artistas de outras épocas.
Na filosofia, autores como Kierkegaard, Nietzsche e Marx fazem uma contestação à tradição, porém, apesar dessa ruptura, eles ainda assim se manteram integrados na mesma tradição; endossaram no horizonte de suas formulações uma aspiração de totalidade. O diálogo com a tradição é justamente o fundamento de um imperativo moral; é entender que os antigos tendem a ter mais consciência da fragilidade das normas do que as sociedades “sofisticadas”, que resolveram acreditar em “novas superstições” destituídas de valores e ideias. Penso que muita coisa na tradição deve ser desconstruido mesmo, no entanto, o que não devemos perder de vista é que há na tradição pontos universais que nos faz identificar algo além desde mundo.
Assim, o funk se apresenta como cultura somente numa dimensão bem particular: como um instrumento de mobilidade social, onde cristaliza em si uma desvalorização dos valores, que termina em levar as massas a consumir cultura na forma de diversão. Não encontramos beleza nisso — ou seja, aquela pulsão da realidade que converge o horror, o caos e a dor em uma lúcida expressão espiritual. Como afirma o filósofo inglês Roger Scruton: “o acontecimento mais banal pode se transformar em algo belo, por um artista que pode ver o coração das coisas”.
A beleza faz das coisas vis uma entonação da nobreza; enquanto o funk carioca percorre o caminho oposto, fazendo o que é belo (a mulher, a dança, sensualidade, amizade, o amor, etc.) se transformar num culto ao horror, com todas as suas consequências morais. O efeito disso surge nas aspirações dos indivíduos, solapada pela cultura de massas e padronizada pelos desejos da multidão — desejos enobrecido de validade como expressão dos “anseios de nossa época”.
Esses anseios, alinhados à cultura de massas, manifestam-se pela tríade sexo-dinheiro-fama, que exprime perfeitamente, quase em sua totalidade, os principais hits do funk. Disso consiste uma completa inversão de valores: as paixões mais baixas e vulgares são exaltados como o padrão a ser desejado, condicionando as pessoas a um energético desequilíbrio interior. Tudo isso acaba por anular todo o senso de significado espiritual da realidade e, desse modo, o funk cumpre seu papel: associando a ideia de ser jovem com a de ser um imbecil.
Nietzsche dizia que a beleza fala em voz baixa, penetrando somente nas almas mais despertas. Ou seja, o discernimento para a beleza ou o desejo de intuir o belo em sua essência não é inato no homem. Não é uma capacidade que nasce pronta, mas sim uma tendência natural que precisa ser desenvolvida na alma humana, assim como a capacidade de caminhar por si próprio. 

Diferente de uma mera introjeção de papeis sociais, esse talento se mostra à luz de uma capacidade pré-existente. É assim também com as experiências religiosas. A fé é apreendida sempre através de um processo progressivo, que precisa ser entendido e desenvolvido para aquilo que é eterno. O contato com a beleza percorre o mesmo caminho, pois no final das contas nossa experiência religiosa é também uma experiência estética — não por acaso há momentos em que somos arrastados desse mundo ordinário de nossas paixões para uma esfera especialmente contemplativa. Momentos estes que nos faz ver que a vida vale a pena.
Em relação à segunda objeção, de que quem critica o funk carioca é racista, por ser uma cultura de gente pobre e negra, não chega a ser um argumento. No máximo um desabafo retórico. Racismo é uma agressão moral e só uma pessoa pode ser agredida moralmente. As discussões sobre o funk gira em torno de um estilo musical; a decadência de um estilo musical que almeja ser elevado como arte. Um estilo musical da qual boa parte de seus representantes são… brancos. Dizer que quem censura o funk é racista soa tão coerente quanto dizer que quem critica a física de Einstein é nazista. As duas conclusões são pateticamente tolas, condicionados por uma reflexão ideológica sem nenhum compromisso com a verdade. Ah, a verdade! Quem se importa com ela dentro desse caldo pós-moderno que virou nossa sociedade?
Em suma, no mundo onde todos os conceitos se derretem, o funk é a plena expressão da pós-modernidade, representada em toda sua aleatoriedade e desordem. Nesse mundo as relações são medidas apenas pelo utilitarismo, tornando a beleza uma mera mercadoria — e de muito mau gosto, certamente. O relativismo é erguido como a bandeira filosófica que satisfaz o gosto de todo mundo. Sacia o desejo intelectual de toda alma tímida e covarde que se recusa a dar um mergulho sincero no mar do conhecimento. São incapazes de suportar a angústia de ter que encontrar uma unidade — a verdadeira substância das coisas — em um mundo onde a maioria se importa apenas com suas próprias paixões. Diante disso, estou convencido de que a beleza — distraído leitor — ilustra nada mais do que uma forma subversiva de ler o mundo, dando sentido a ele.

©2016 Lindiberg Mustang

O domínio da ideologia

terça-feira, 28 de julho de 2015 Postado por Lindiberg Mustang
Desde Platão se discute a desequilibrada relação entre o político e o filósofo. Em Platão, o verdadeiro filósofo é também o verdadeiro político, enquanto o sofista, o cara aplacado pela ideologia, é a falsificação de ambos.
É evidente que existem numerosas expressões ideológicas. Nas palavras de Marx, ideologia foi acentuada como uma falsa consciência; uma ferramenta que deforma a realidade, colaborando para certa manutenção de relações de dominação. O erro de Marx foi achar que ideologia se manifesta apenas no atrito entre classes sociais. Ora, o próprio marxismo se tornou uma ideologia, fechada em si mesma, e apontando como inimigo qualquer um fora de seus arraiais.
A submissão a uma ideologia se mostra como um grande capricho da alma humana, que sempre tende a se inclinar confortavelmente atrás de um ideal que ofusca todo o brilho da realidade; ou seja, o ideólogo é aquele que ajusta a realidade àquilo que ele acredita. Veja o exemplo de Jonas, que foi enviado para pregar o arrependimento a uma nação pagã. O profeta se revela um nacionalista com uma alma extremamente perturbada, enxergando Nínive, a nação pagã, como inimigos a serem destruídos, e não a serem salvos. Esse é o resultado quando a ideologia política se fanatiza na alma de alguém, tornando um dos fatores básicos que gera indisposição para amar e acolher o próximo. O que foi o grande drama de Jonas ornamenta simbolicamente nosso entendimento para perceber os paradigmas dos dias atuais.
Ideólogos sempre lutam — e matam — em nome do “bem maior”. Esse espetáculo da ideologia não encerra uma tragédia, mas guarda dentro da história a manifestação radical do mal no mundo. Isto nada mais é que a consequência de reduzir a realidade aos critérios da própria imaginação humana, de que é possível assumir o papel de Deus e criar o paraíso na terra; mesmo que para conseguir, ter de fazer dela um inferno. Qualquer ideologia, seja de direita ou esquerda, acreditam possuir a chave da compreensão do mistério da história e da sua redenção. Desmistificam o sagrado para sacralizar a ação política. Assim, lutar por um ideal, será sempre sinônimo de aderir ao espírito de rebanho, se engajando em um partido ou algum programa; uma fuga atrás da massa onde a consciência é diluída, culminando numa recusa da responsabilidade individual — um abraço para os militantes políticos.
A filosofia, já na sua inauguração, foi a tentativa de resistir a esse tipo de fantasia política que alarga as piores dimensões da estupidez humana. Por outro lado, o Evangelho é a própria superação de toda postura ideológica. Para os inteligentinhos que recorrem à etimologia da palavra ideologia, tudo pode ser uma forma de expressão ideológica — como quem diz: “todo mundo possui uma ideologia”. Não é bem assim. Como cristãos, somos convidados por Jesus a fazer essa crítica a toda postura ideológica, que infelizmente também é abraçada por aqueles que se dizem seguidores de Jesus. Por consequência, o cristianismo se assume como ideologia quando abraça práticas farisaicas para determinar os certos e os errados ou salvos e condenados; quando apresenta típicos comportamentos convencionais, suntuosos, vaidosos; quando se apropria de um sistema político dito cristão; quando exige uma organização da sociedade ou um sistema moralista empenhado em converter islamicamente a todos.
Como sugere Jacques Ellul, é necessário criticar nossas próprias ideias, convicções, igrejas e movimentos, tudo à sombra de uma leitura bíblica que não seja usada para justificar nosso comportamento, fugindo do domínio ideológico.
Portanto, estou convencido que o Evangelho não deve ser definido como um campo coerente de crenças e doutrinas fechadas a serem rigorosamente adotadas. No momento em que a religião, de forma estelionatária, se apropria do Evangelho e apresenta um cardápio de sentenças a ser fielmente seguido, então, o Evangelho se torna uma ideologia que se espalha pelo discurso. Longe disso, o Evangelho deve ser entendido como uma pessoa que se manifesta nas relações de amor.
Jesus, que andava exalando escândalos entre os religiosos, não foi batizado sob uma linguagem ideológica. Seria pertinente terminar, distraído leitor, dizendo que o Rabi de Nazaré foi indiferente a qualquer ideologia. Foi intransigente com a ordem estabelecida, expondo uma postura basicamente negativa em relação à conformidade de crenças dogmaticamente organizadas. Não perdia tempo correspondendo aos caprichos institucionais. Tinha como templo o universo ao seu redor, onde plantava liberdade nos corações de todos que se detinham no seu caminho. Jesus não criou uma nova religião para concorrer com aquelas que já existiam; não criou o cristianismo e nem mesmo a igreja da maneira como a concebemos hoje — centralizada, soberba, onde não se põe a serviço, querendo apenas liderar e ser servida. O Rabi caminhou na simplicidade. E talvez simplicidade seja a maior marca da autenticidade de Deus.

©2015 Lindiberg Mustang

O homem e a deformação da realidade

segunda-feira, 2 de março de 2015 Postado por Lindiberg Mustang
Vivo neste mundo como um estrangeiro em minha própria época; e é por este motivo que sou sucumbido por ele. Um indivíduo que pretende ser fiel à sua própria consciência em um mundo onde todos usam máscaras, com certeza será um incômodo para essa sociedade do espetáculo. Paulo Brabo diz que “Deus oferece aos santos dois destinos, não ser nada ou não ser compreendido”. No meu caso, fui acachapado com os dois.
Levando isso em conta, vez e outra alguém retruca: “Lindiberg, você diz essas coisas, mas, afinal, em que você acredita?” Uma pergunta válida e honesta que jamais poderia ser respondida em poucas linhas. Entretanto, minha vaidade não me permite ficar calado.
Sou cristão, e a pessoa de Jesus lança luz sobre tudo àquilo em que creio. Acredito na liberdade humana, em sua autonomia moral e intelectual, todavia, só em Jesus podemos ser de fato livres (Gl 5.1). Porém, em nossa liberdade escolhemos ser mais escravos do que de fato senhores de nós mesmos. A liberdade humana é o elemento central para entendermos a realidade circundante; somos livres dentro de nossos próprios limites.
Acredito na inerente corrupção humana herdada do “pecado original”. Somos seres inclinados ao caos, e somente através da supremacia da vontade humana sobre a condição humana podemos vislumbrar uma autêntica atitude revolucionária. Ou seja, foge de nossas possibilidades a capacidade de nos salvarmos. O problema consiste no fato de pouca gente ter entendido isso durante toda a História. O homem, sempre em algum momento dá um jeito de erguer seus “bezerros de ouro”: o dinheiro, o Estado, a tecnologia, a propaganda, o Mercado, tudo isso são produtos da ação humana, que se tornaram potências com suas devidas autonomias. Cada uma delas é independente, possuindo suas próprias leis; governam por si mesmas e sempre, sempre exigirão a total devoção do homem. Durante todas as épocas, sempre houve homens que depositaram sua confiança, segurança e sua esperança no Estado, no dinheiro, no Mercado, etc.
O homem deformou a realidade face a revelação de Deus, criando seus próprios deuses, sendo incapaz de construir com a ajuda exclusiva da moral, uma relação justa com o dinheiro ou qualquer uma das potências citadas. Potências que aniquilam a consciência, controlando ao mesmo tempo a organização objetiva da sociedade e o drama humano.
Todavia, nem a teologia, nem a Bíblia nos dão indicações que permitem decidir sobre a excelência de um sistema econômico ou de governo; não há uma doutrina política cristã. Ora, parece decepcionante não se possuir um sistema que corresponde à fé cristã; no entanto, Jacques Ellul salienta que “nenhum sistema pode nem corresponder a esta realidade nem organizá-la”. Isso porque o cristianismo em si é mais realista e cheio de substância que qualquer um dos três ou quatro sistemas que estão aí disponíveis, querendo estabelecer a organização da sociedade. A Revelação nos mostra qual é a realidade exata do homem e do mundo. E quando nos deparamos com essa Revelação, não encontramos uma filosofia, ou uma política e nem mesmo uma religião. Ellul conclui dizendo: “Nós encontramos um engajamento de um diálogo. Uma palavra pessoal que me é endereçada e que me interroga sobre o que eu faço, sobre o que eu espero e definitivamente sobre o que eu sou”. Somente neste entrelace que há a possibilidade de uma genuína liberdade.
Ora, se por um lado a Bíblia não nos fornece um sistema político ou econômico, por outro, a Revelação nos orienta a conviver com essas potências da maneira mais sóbria possível, sem se deixar escravizar por elas.
O homem escreveu sua própria história, criando seus próprios grilhões, sendo incapaz de se libertar. Shakespeare já nos avisou que a História é verdadeiramente uma narrativa contada por um idiota, é ruído e furor. A História está comprometida, o mundo está comprometido. É por isso que Deus penetra em nossa realidade, como o Filho do Homem, produzindo libertação e esperança na alma daqueles que nele confia; mostrando que a História não é um desenrolar mecânico de uma ordem preestabelecida. Não é pelas suas obras que o homem chega à liberdade; ele precisa ser liberto, precisa ser salvo. O verdadeiro sentido da história é a conclusão na liberdade. Somente Deus porá fim (e o homem terá sua participação) em toda desordem arquitetado pela obsessão humana; porá fim em toda potência que exige do homem adoração, e por fim, em todo engano lançado pelo Inimigo.
Claro, esta conclusão não nos deixa passíveis e confortáveis diante da realidade. Pelo contrário, nos comprometem e nos fazem entrar numa caminhada pessoal de resignação diante das configurações que sustenta o mundo (Rm 12.1). Dessa forma, não há nada mais imbecil do que a tentativa das instituições de santificar a sociedade, o Estado ou o dinheiro. Essa prática sempre se afunilou em desastre, pois o inimigo sempre será irredutível e impessoal; ou seja, o mundo continua mundo, o dinheiro continua dinheiro... A primazia do Evangelho, portanto, é exatamente mostrar essa realidade.

©2015 Lindiberg de Oliveira
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