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O clima pós-moderno

quarta-feira, 22 de março de 2017 Postado por Lindiberg Mustang

Se alguém quiser saber o que se passa na presente fase da história humana chamada “era da incerteza” (uma ideia que permeia o mundo desde a metade do século 20), é obrigado a desenvolver uma habilidade que seja capaz de penetrar e discernir todas as camadas dos discursos pós-modernos — agora rebatizado de “pós-verdade”. Ortega y Gassete dizia que “cada época é como um clima, que predominam certos princípios inspiradores e organizadores da vida”. O período pós-moderno, que vive um momento de luto da razão como instância de significado, é responsável por dar (ou suprimir) sentido ou criar narrativas a toda concepção de mundo  enraizada em alguma certeza ou verdade: não há como ter certeza de nada porque tudo depende de nossa concepção subjetiva sobre a realidade. As pessoas discordam entre si e se dispõem de interpretações profundamente diferentes acerca do que significa viver neste mundo. Este é o princípio organizador de nossa época, nosso “clima”.
A ideia de pluralidade de percepções e de que cada indivíduo dá um significado circunstancial para o modo como olha a vida não é totalmente equivocado, e é coerentemente assentada na filosofia, na literatura, na política, na cultura, e também na teologia — um campo do conhecimento que ainda tenta conservar um status de pureza. Obviamente existe essa dimensão de incerteza da realidade fincada nos paradoxos e tão bem explorados por Nietzsche e Kierkegaard, mas essa concepção não contempla o todo da realidade; é apenas uma camada desta. Platão e Aristóteles captaram esta dinâmica da realidade, no entanto mergulharam mais fundo a ponto de vislumbrar uma unidade nisso tudo; não uma unidade simples, mas unidade do diverso, como em tudo que é real e vivente. Não chegaram a essa conclusão de modo vulgar, pela simples coerência lógica e mecânica, mas como uma tendência, uma disposição da própria diversidade a uma finalidade que tudo abrange.
Pensar o mundo como uma unidade não quer dizer que seja possível uma descrição total da ordem cósmica, pois este ato heróico está para além da estrutura da existência humana — nem mesmo a união de todas as religiões acompanhadas de todas as ciências poderia nos dar a condição de desenvolver uma descrição total da ordem cósmica. A realidade, senhoras e senhores, é formada por tempo, espaço e dimensões cosmológicas que fogem do nosso entendimento. Não obstante, mesmo com uma percepção fragmentada, é inegável não presumir que o Universo constitui alguma ordem que não depende do ser humano, pois é dentro dela que surge o homem; há, sem dúvida, elementos de desordem e de caos, contudo, esses elementos absurdos precisam estar presentes.
Quando não há a possibilidade de se emudecer diante da ordem cósmica, de calar e se abrir para o que existe efetivamente fora de nós, o que resta é profetizar o lamento relativista de que “o homem é que cria a realidade”. Ou seja, essa é aquela perspectiva kantiana de que o olhar é o que determina a imagema ideia de que vemos os objetos, por exemplo, no espaço e no tempo não porque espaço e tempo são partes do próprio mundo, mas porque são partes do nosso aparato humano para conhecerHegel critica essa concepção da epistemologia de Kant afirmando que o indivíduo é essencialmente definido pela capacidade universal da razão e não pela individualidade do sentimento ou da percepção dos sentidos, que isola o indivíduo da esfera objetiva. Ao definir razão, Hegel vai além, entendendo-a como o conjunto das leis do pensamento e criadora da realidade, isto é, o real é obra histórica da razão. Assim, podemos remontar o entendimento dos escolásticos cujo o esforço era alcançar a contemplação da verdade; a noção moderna, ao contrário, se desenvolve e alcança seu ponto de transição no pensamento de Marx com um convite para transformar a realidade — transformar o mundo.
Vale ressaltar que essa foi a tentativa de Marx, totalmente inoperante, de superar o subjetivismo moderno, negando a noção de que a História se move impulsionada por uma dialética que se dava no campo das ideias, como tinha dito Hegel. Marx trabalha com a ideia de que o homem é o homo faber, que descobre sua essência na práxis, fazendo, trabalhando, e não no interior de sua consciência. Na tradição marxista, qualquer reflexão sobre a realidade ou não realidade que se isola da práxis é uma perda de tempo e capricho de metafísicos.
Marx não descarta o componente dialético que move o mundo, no entanto, essa dialética não acontece no domínio das ideias como pensava Hegel, mas no mundo objetivo, entre o senhor feudal e seus servos, entre o patrão e o operário; a única dialética possível porque é fruto do agir humano. O problema é que Marx não chega nesta conclusão agindo objetivamente, trabalhando numa linha de produção ou participando de uma revolução, mas através de um esforço intelectual da própria imaginação; portanto, Marx tenta superar o subjetivismo operando exatamente no campo da subjetividade, tenta mudar o mundo através das conclusões de sua imaginação, antecipando, dessa forma, o que iria ser regra no pensamento pós-moderno.
Desse modo, guiada pela concepção pós-estruturalista — de que a realidade é considerada apenas como uma construção social e subjetiva, em perpétuo devir —, nossa época segue na impossibilidade de compreender o próprio drama em que vivemos.
A premissa básica para essa incompreensão é uma sinistra deformação da linguagem. A aquisição do domínio da linguagem é o elemento fundamental para que se consiga ser fiel a nossa experiência diante do mundo sem se deparar com a ideia posta de que tudo na vida pode ser mera alucinação. Ser fiel a experiência real evita que se reproduza na consciência apenas o que foi introjetado pela cultura e pela sociedade. Na maioria das vezes as pessoas absorvem valores que não correspondem a sua experiência direta, gerando uma cisão entre o indivíduo e sua experiência real. Ora, em todo caso, os elementos culturais nos ajudam a expressar para nós mesmos o que vemos no mundo; o problema é quando se decide em favor da cultura e não da individualidade. Os elementos culturais devem ser usados para as finalidades do indivíduo, servindo-o, caso contrário o indivíduo será assimilado por esses elementos tornando-se apenas um repetidor de frases de efeito, pensando a realidade sempre fora de sua experiência genuína.
O impacto disso é uma linguagem deformada geradora de um discurso que dificilmente alcança a compreensão dos fatos. Discurso é movimento, é transcurso de uma proposição a outra; é uma unidade formal organizada por premissas e conclusão. O discurso sempre deve estar ligado por algum nexo, seja ele lógico, analógico, cronológico, etc., que obviamente suscitará uma modificação no ouvinte por mais breve que seja — aceitar ou rejeitar um discurso é de alguma forma passar por uma modificação. Hoje, sob o clima da pós-modernidade, discurso foi reduzido a definições estranhas como: “dis-curso, desvio de curso”. Essa definição esquisita faz sentido dentro de uma ocasião oportunamente chamada de “pós-verdade”, onde a linguagem já não é mais capaz de expressar sua referência à experiência real.
O discurso, que hoje repousa à sombra de explicações pós-estruturalistas, e que se arrasta de Marx à Foucault — e de Foucautl à filósofos de 140 caracteres —, é incapaz de apreender o real, pois sempre aparece acorrentado a uma escolha ideológica (quando muito são discursos sobre textos que correspondem apenas a outros textos, descartando a experiência real). Assim, o subjetivismo moderno fez do relativismo a única experiência possível, e por isso mesmo é aceito como inquestionável o mantra que diz  que “todo discurso é ideológico e político”; uma ideia que joga no balaio tanto a oratória parlamentar quanto a poesia lírica, tanto uma notícia de jornal quanto o trabalho filosófico sobre metafísica, tanto o conselho moral de um pai para seu filho quanto o relatório de uma empresa a seus funcionários. Tratar as coisas dessa forma e dizer que “todo discurso é ideológico”, que “não há realidade sem ideologia”, é não saber o que é discurso, é não saber o que é realidade e menos ainda ideologia. É o típico mecanismo que reduz todos os discursos ao mesmo nível, sem uma hierarquia de valor; eis nivelamento que geme sob a bota do marxismo.
O problema dos marxistas de nosso tempo é que não leram Marx, que situou com muita precisão a ideologia como uma falsa consciência; uma ferramenta que deforma a realidade, colaborando para certa manutenção de relações de dominação. Ideologia é um pensamento total que tem por ambição explicar tudo de antemão, pois nada tem a aprender porque já sabe demais. Consequentemente, a realidade será mutilada e sempre ajustada ao discurso ideológico. Ora, a realidade não é ideológica, não depende da ideologia e muito menos de nós para ser o que ela é. A realidade, que é permanente, está fora de nós ao mesmo tempo que nos abrange, e como diz Heidegger, toda nossa orientação é guiada por ela, pelas coisas: “na irrupção do humano, nossas pesquisas confrontam as coisas”.
Se afastar de uma mente ideológica não significa abrir mão de nossas próprias perspectivas, e nem mesmo nos impede de assumir que a política pode ser compreendida de muitas maneiras — o que não implica aceitar todas as suas formas ou negligenciar nossas convicções em nome de uma suposta imparcialidade.
Assim, o sentido de ideologia, reinventado por Lênin e Gramsci, se converte numa concepção neutra que constitui qualquer ideário de um grupo de indivíduos. Como vimos acima, há uma tendência na pós-modernidade de mudar o sentido das palavras; se mudam o sentido das palavras a comunicação se torna impossível. Mesmo que se entre no plano de realidade do sujeito ideológico, a comunicação ainda se torna debilitada, pois o apelo à experiência é inútil, porque ele pode usar os mesmos nomes para designar os objetos da experiência, mas ele estará pensando outra coisa.
O sujeito ideológico ajusta a realidade ao seu próprio horizonte de consciência, como um alfaiate, que invés que ajustar o terno do cliente prefere lhe amputar o braço, adaptando a realidade às suas crenças. Ao contrário, é a realidade que nos orienta e, quando ela nos desampara, diz Heidegger: “o Nada nos encurrala, e, na sua presença, toda enunciação do ‘ser’ — tudo aquilo ao qual aplicamos o termo ‘é’ — se silencia”. A ideia aqui não é negar o relativismo, mas entender que este é apenas uma fina camada epidérmica da realidade, e não a totalidade do real. É apenas uma concordância prática, circunstancial, sem a dignidade de um genuíno ideal moral. E quando procura se adornar com uma ideologia autoglorificadora, que se justifica sobretudo como teoria "científica", os discursos mais bizarros se tornam deveras atraentes quando repousam em cabeças como de um Robespierre, de um Lênin ou de num Hitler.
Na cultura, as consequências são incalculáveis, pois ao excluir a moral e o direito natural os maiores absurdos da terra estariam legitimados em nome do relativismo; não haveria nenhuma razão pela qual se deva supor que um sujeito não possa ser morto por ter uma tendência homossexual, ou que um marido não possa bater na sua esposa: levando o relativismo às últimas consequências, qualquer condenação dependeria de fatores absolutamente contingentes.
Em um mundo onde o certo e o errado existem de fato, podemos afirmar com muita tranquilidade que os maridos não podem agredir suas esposas, que uma pessoa não pode ser assassinada por sua tendência sexual e etc. Não há como afirmar a imoralidade desses dois casos e rejeitar a moral. Esse é um paradoxo do qual determinadas filosofias pós-modernas nunca conseguirão escapar, pois elas vivem de ditar regras em cima de preceitos que elas próprias afirmam não existirem.
A pós-modernidade é nosso clima, frio, embaraçoso, insólito, disforme; é sob este clima que precisamos desenvolver uma habilidade que seja capaz de penetrar e discernir as camadas da realidade, tão ocultada pela neblina pós-moderna. Se enfrentada com honestidade, esta tensão será saudável, e a medida que se avança no cerco das ideias a melodia dramática consiste em manter sempre desperta a consciência dos problemas, que são o drama ideal.
Ao ultrapassar a neblina do relativismo pós-moderno, poderemos descer a assuntos mais imediatos, tão imediatos que se conflui com nossa própria vida, como dizia Ortega y Gassete: “a vida de cada um”. Mais ainda, quando se insiste em mergulhar por debaixo do que cada um costuma acreditar que seja sua vida, perfurando-a, vamos nos ingressar em regiões subterrâneas do nosso próprio ser, que permanecem secretas de tanto nos serem íntimas, por serem nosso ser.

©2017 Lindiberg Mustang

A consolação ilusória das multidões

quarta-feira, 23 de novembro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
A cobiça, que é sem dúvida o desejo mais entranhado no homem, e a vontade de poder que dela decorre, são características genuinamente individuais que habita desde tempos pretérito o coração de cada um. Isso se confirma com clareza nas palavras do apóstolo, que diz: “cada um é tentado pela sua própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido” (Tiago 1:14). Dessa forma, esse mal só pode ser discernido individualmente a partir de um confronto aprofundado com o próprio ser, que reconhece na experiência interior a sedução e a cupidez que leva à desordem da alma.
Se por um lado a cobiça tem sua origem no indivíduo, por outro, é na coletividade que ela se legitima — é o corpo social que a exalta. Observamos na massa a totalidade dos indivíduos que produz um acréscimo de poder, no entanto, um corpo social sobrepuja esta expectativa dando um caráter desmedido em relação ao sujeito, e um sentido último, que constrange todo indivíduo e que faz com que somente o corpo social pareça autêntico.
É da coletividade que brota o espírito de poder mais alucinado, onde as consciências se diluem e, por isso mesmo, assumem um ar de verdade absoluta. Assim, a cobiça pessoal de cada indivíduo busca se justificar e se satisfazer numa via aberta para esse corpo social.
Jesus discerne com maestria essa dimensão da coletividade: “Ao ver as multidões, teve compaixão delas, porque estavam aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor” (Mateus 9:36). Nota-se que Jesus não trata com as multidões. Diante delas ele só exala sua compaixão e serenidade. O homem na multidão, envolvido nas massas, é inalcançável na medida em que abraça essa multidão na busca por uma consolação ilusória; a partir daí cria-se um mundo peculiar de sentimentos e tudo que se faz é reforçar esses sentimentos.
O indivíduo que se submete a uma massificação internaliza constantemente a ilusão de que continua indivíduo, mas não tem condições de afirmar a sua prerrogativa individual. Assim, a multidão é incapaz de expressar até mesmo uma visão de mundo — no máximo expressam uma intersolidariedade grupal. Esse delírio é nossa condição diante da proliferação demográfica e no inferno das cidades aplacado pelos discursos sobre democracia.
Dizia Chaplin que a multidão é um monstro sem cabeça, e Mateus 9:36 narra que Jesus encontra uma multidão aflita e exausta, sem nenhuma razão em si, nenhuma verdade, nenhuma mensagem, à mercê do primeiro louco, do mau pastor, do líder político, de um mito… Além da miséria contingencial que envolve as massas, Jesus se atenta justamente para esse potencial de horror quando as más autoridades tomam o controle. O povo ensandecido se inclina facilmente a lamber botas de autoridades, a erguer ídolos pra si, a prestar culto a salvadores da pátria. Freud dizia que a assustadora irracionalidade dos seres humanos emerge de grandes grupos e que as profundas forças libidinais de desejo (forças do amor) são entregues ao lider, enquanto os instintos agressivos (ódio) são dirigidos aos que estão fora do grupo (claro, há controvérsias sobre o conteúdo da explicação freudiana, mas na prática é justamente isso que acontece).
O Filho do homem não é mestre de multidões, não se torna líder delas; não se mete a dirigir o que é ingovernável (e esse é o elemento paradoxal que torna a massa mais facilmente domesticável), pois sabe que ao se colocar na liderança de uma multidão, efetivamente, faria com que cada homem se despojasse mais ainda de sua individualidade própria. Como afirmou Kierkegaard: “A multidão é a mentira. Cristo foi crucificado porque não queria se envolver com a multidão (ainda que ele se dirigisse a todos), mas queria ser o que ele era: a verdade que se relaciona com o indivíduo singular”. Caso contrário, a multidão seria reafirmada contundentemente em seu “estado de multidão”, inexistente e destituída de significado.
A máxima nietzschiana “nenhum pastor, um só rebanho”, é o último estágio do homem desolado. Mário Ferreira dos Santos comenta essa frase dizendo que nesse caso o líder é apenas a projeção da própria multidão: “O líder é líder porque segue à frente da multidão e a multidão segue-o porquê ele se coloca à sua frente. O líder é um produto da massa que se torna um rebanho sem pastor, porque não é conduzida. Na verdade, ela conduz o líder, que teme não ter acompanhantes. Esse é o estágio de que fala Nietzsche”.
O mecanismo básico das mentalidades das massas é irracional; a multidão não é guiada pelas mentes que a compõe, mas pelos seus instintos. Há inúmeras causas envolvidas nas decisões humanas, não somente entre indivíduos, mas principalmente entre os grupos. Qualquer informação bem colocada, principalmente quando associadas a alguma imagem estonteante, tocará as emoções irracionais das pessoas, dirigindo todo o comportamento das multidões — ao ponto de fazê-las apoiar uma guerra ou desejar uma coca-cola; tudo isso através de coisas irrelevantes que podem se tornar fortes símbolos emocionais. Ainda no século 19, Kierkegaard já entendia que “não há arte alguma em ganhar uma multidão; tudo o que é preciso é a não-verdade e um pouco de conhecimento das paixões humanas”. A publicidade, claro, foi um dos setores do mercado que melhor entendeu isso quando faz essa conexão emocional entre um produto ou serviço.
A mensagem do mestre de Nazaré desconstrói as bases de todo corpo social muito bem engajado. Por isso a boa nova de Cristo parece terrível para nós que vivemos nesta sociedade de massa, repetindo as mesmas coisas que o grupo está dizendo, arrolados nos mesmos sentimentos e facilmente mobilizados para determinada organização política, social, religiosa, etc. Neste sentido, as massas se tornaram a verdade, o poder e a honra, um tipo de deus — em suma, a ascensão do poder do “numérico” é a principal fonte do mal no mundo moderno, que se arrasta até nossos dias, desde Sócrates e Jesus, que foram vítimas do “numérico”, da “multidão”.
Presenciamos este fenômeno trágico onde cada conglomerado se reduz a um número, e se satisfaz em ser assim. O Evangelho é precisamente a Luz onde cada um pode encontrar sentido fora da massa, onde cada indivíduo pode discernir o caos dessa sociedade enlouquecida. Portanto, o famoso grito de protesto socialista que diz "trabalhadores do mundo, uni-vos!", não passa de uma armadilha dantesca para a consciência individual. Essa “união” não passa de uma adesão dissimulada a um espírito de manada, atraente para a alma covarde, no entanto, indigestível para aquele que sabe que lhe custará a supressão do fator Indivíduo.
Por isso, senhoras e senhores, os discípulos de Jesus são orientados não a enquadrar a multidão, mas dispersa-las, promovendo a vertigem da liberdade nas consciências mais corajosas.
Quem ousa realmente se levantar como uma testemunha da verdade não se abstém de atacar a multidão, pois é um componente indispensável para um profeta, um apóstolo, um mártir. Envolve-se, se possível, com todos, mas sempre individualmente, falando a cada pessoa, uma por vez, nas ruas, nos becos, como insiste Kierkegaard, a fim de dispersá-la.


©2016 Lindiberg Mustang

O que é arte?

sexta-feira, 7 de outubro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
O que faz de algo uma obra prima? O que é arte? Bem, até o século 19 as respostas poderiam ser bem convencionais, todas aprovadas por um fator essencial da experiência humana: o êxtase, o devaneio, o arrebatamento íntimo, o sentimento que elevava o ser ao Eterno; era a iniciativa pela qual o indivíduo, amparado pelas mãos dos deuses, se anunciava ao mundo.
Foi no século passado que toda proclamação de valor estético caiu no vazio do relativismo. Depois de expor um urinol como obra de arte, intitulado como A Fonte, Marcel Duchamp espalhou um resíduo de ceticismo e muita gente começou a se perguntar: “O que de fato é arte?”. Desde então as respostas para essa pergunta começou a transitar entre o sublime e o vulgar, entre o admirável e o trivial. Em um mundo em que a afluência artística que tinha em si o brilho da beleza, a arte chega ao século 20 ofuscada pela piada de Duchamp.
Particularmente penso em arte como uma unidade composta por forma e conteúdo. Explico: como pensava Aristóteles, forma não se reduz a uma mera figura externa das coisas, mas é o princípio da sua própria funcionalidade. Forma seria então a estética de uma obra, são os traços de um desenho ou o contorno de uma pintura; é a estrutura da composição de uma música ou todo arcabouço de um filme; é a métrica de uma poesia ou o busto de uma escultura. O conteúdo, por outro lado, é o que dá o aspecto dialogal de cada obra; são os meios estéticos de expressão que se organiza em função de seu efeito artístico. O conteúdo é o que o artista quer passar, é a sua mensagem; é todo o aspecto dramático da obra em que o artista arrisca a vida para dar existência a sua criação. 

Para Nietzsche, de tudo quanto se escreve só vale a pena se deter naquilo que é escrito com o próprio sangue. Eu diria que na arte não é diferente; o sangue é símbolo dionisíaco, significa vontade; símbolo também da vida. Escrever com essa vida significa a própria elevação do espírito, que possibilita estar à frente de todos, de antecipar situações e tendências. Isto acontece quando o artista transforma a situação em que vive na situação de sua própria época, tornando a obra não somente um comentário de seu tempo, mas também um comentário sobre todas as épocas, universalizando o que há de comum na história humana.
Ora, nem sempre é possível contemplar de imediato a forma e o conteúdo em perfeita harmonia numa obra. Às vezes o conteúdo se apresenta fixada numa forma embaraçosa, onde as imperfeições estéticas são as condições humanas da obra falar — prefigurando a própria beleza da obra.
Dessa forma, o que impressiona nas músicas de Bob Dylan não são seus simples acordes acompanhado de uma fonografia indefinida; o que nos surpreende nos filmes de Stanley Kubrick não é seu perfeccionismo já há muito ultrapassado pela tecnologia atual; o que assombra nos romances de Dostoievski não é o niilismo que parece engolir todo mundo. Não. Nada disso fica em pé diante da profunda experiência que emana do conteúdo dos trabalhos desses gênios, atulhado de angústia, solidão, orgulho, loucura, morte.
É assim que a arte cumpre seu papel funcional no mundo, inspirando, consolando, elevando o espírito ou comunicando o desprezo, a decadência e a humilhação. Tudo isso através da caneta, dos pinceis, da argila, da tinta, das imagens, dos sons, dos acordes, do movimento, da dança, etc.
Entretanto, só se pode perceber a função da arte quando se entende o conflito entre forma e conteúdo; e isso só é possível na medida em que o conteúdo sobrepõe à forma. É nesse momento que a redenção brada mais alto que as imperfeições estéticas, revelando que a supremacia do Bem prevalece sobre a desordem que arrasta para baixo toda dignidade humana. Assim, a arte oferece sempre uma arriscada travessia que vai das determinações mais baixas e aponta para uma dimensão sublime da realidade. Essa travessia não é possível para pessoas que mal sabem suas próprias opiniões sobre a natureza humana, ou seu lugar dentro da História; não é possível nem mesmo para uma elite que é incapaz de encontrar o sublime na fragilidade do grotesco.
Foi Paulo Brabo que me fez entender que o sublime estampado no grotesco também nos lembra de que somos gente, com nossas falhas e deformidades, revelando a crueza de nossas funções biológicas como a fome, a cede, o suor, o arroto, o peido — elementos estes que para a superficialidade do orgulho humano apenas nos distrai da ideia de eternidade. Ledo engano.
Não se trata de elevar essas necessidades primárias do homem, mas de entender que o sublime também pode ser encontrado no grotesco justamente porque este evoca o ciclo da vida e morte das coisas. E isso o homem urbano sofisticado não acolhe porque trata de uma realidade que arranca o sujeito da ideia de transcendência jogando-o na esfera do temporal, do relativo, do constrangedor, do indecoroso, do hic et nunc. Aqui o sublime se apresenta quando a beleza faz dessas coisas uma abertura para se vislumbrar algo mais elevado, que vai além do temporal. É a travessia que seguimos juntos com o artista da terra ao céu, do inferno ao paraíso que começa justamente na nossa decadência fisiológica.
Como Paulo Brabo deixa claro, essa é a ideia embutida na literatura de cordel: “O cordel é anguloso, despretensioso, barato, escatológico, relaxado, inferior, almeja o popular – sua mensagem é: posso estar na mão de todos”. Seu conteúdo é a de explicitar uma genuína participação que vai além dos anseios padronizados pela cultura. Ora, a beleza também é graça divina acessível a todos os homens e pensar o contrário é negligenciar sua natureza subversiva.
Diferente de cada criação da Apple, seja um dispositivo ou um anúncio, que fala de um ideal sofisticado, elegante, superior, distinto e sem arestas — com sua mensagem: posso estar na mão de poucos —, o cordel, grotesco, carregado de uma estética defeituosa, replicando tragédia, outrora comédia, representa igualmente a necessidade humana de consolo e harmonia; aquela ânsia da alma pela ordem que se alimenta precisamente do valor último que essas obras indicam. Nesse caso, o cordel indica, ou nas palavras de Paulo Brabo: “ilustra um modo subversivo de ler o mundo, um modo que fala de espaços abertos, temporários e sociais — festas populares, feiras e circos mais do que casas e shoppings”. Ou seja, exala um conteúdo que evidencia esse valor último que evoca o sentimento de participação numa comunidade.
É singular o fato da beleza repousar justamente naquilo que se universaliza no homem. Não por acaso a graça, “que se manifestou a todos os homens” (Tt 2.11), é atrelado ao conceito de beleza.
Quanto a verdadeira obra de arte, ela não só é uma expressão da vida moral, mas também o resultado de uma luta interior em que o objeto artístico se torna algo muito além da intenção do artista. É aquela situação em que o artista produz algo maior que a si mesmo, transcendendo suas sensações básicas e imediatas — uma missão que até os anônimos cordeis também cumprem. Afinal de contas, a expressão artística mais elevada não é aquela onde a perfeição estética fala mais alto, e sim aquela em que o Bem fala mais alto. E quando o Bem fala mais alto o horror desaparece sob o luz da beleza.
©2016 Lindiberg Mustang

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A relação entre palavra e imagem

terça-feira, 6 de setembro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang

Há milênios a literatura se arrisca a fazer uma releitura exemplar da realidade humana. Os romancistas com suas obras de ficção conseguiram expressar, até mais que os filósofos, um critério do real que ultrapassaram o seu tempo. Aliás, não só o seu tempo, mas o tempo. Apesar de cada obra de arte ter sua data de nascimento, ela se torna atemporal ao nos fazer apreender a eternidade naquele lapso de segundos em que nossa alma se abre para verdades até então ocultas.
Essa é a experiência quando se fita os olhos com profundidade em obras como de Homero, Dante, Shakespeare, Dostoievski, Kafka, etc. São histórias com aquela ousadia de uma narrativa sofisticada, que também nos ajuda a criar nossas próprias narrativas, clareando diante de nós nossos próprios dramas.
O cinema, sobreposto à literatura, também nos orienta diante de nuances da realidade para uma compreensão melhor da vida e da natureza humana. É isso que aponta filmes como 2001-Uma odisseia no espaço (1968), O poderoso chefão (1972), Laranja mecânica (1971), Blade Runner – O caçador de androides (1982), Clube da luta (1999), A vila (2004), Na natureza selvagem (2007), Watchmen (2009), O homem duplicado (2014), Mad Max – Estrada da fúria (2015), O regresso (2016). Contudo, como pontua Martim Vasques da Cunha, existe uma hierarquia sobre o assunto: “uma coisa é literatura; a outra são produtos derivados como o cinema e as séries de TV. A primeira é uma experiência que estimula a interioridade; a segunda atiça, em sua maioria, os sentidos da visão e da audição, mas também permite um diálogo frutífero entre a imagem e a palavra escrita”.
Quando cultivamos esse intercâmbio entre a palavra e imagem, podemos contemplar no cinema uma espécie de espelho da modernidade que revela o que há de mais belo — assim como o que há de mais traumático — na humanidade; A lista de Schindler, de 1993, por exemplo, retrata estes dois aspectos ao exibir a luta interior de um homem que se nega a fazer parte, mesmo de forma passiva, de um dos maiores genocídios da história. Schindler é o homem que discerniu a realidade do bem e do mal; o homem que não se permitiu ser massa; o homem que preservou as determinações de sua consciência individual mesmo pondo em risco sua própria vida.
É desse modo que o mundo cinematográfico se constitui como uma dimensão profunda da arte, captando os movimentos invisíveis do espirito. Apesar de a imagem ser atraente por sua fácil assimilação, elas ultrapassam a concepção vulgar de meras sequências de imagens para fins de entretenimento.
Cineastas como Stanley Kubrick, Martim Scosese, Woody Allen, os irmãos Coen, Quentin Tarantino, Francis Copola, Clint Eastwood, etc., são gênios do suspense, do mistério, da dissimulação, que gera no espectador experiências únicas através de visuais estonteantes e personagens caricatos moldados por histórias que às vezes dão um nó no cérebro. Apresentam-nos dramas de personagens que poderiam acontecer com qualquer um de nós.
Na literatura, obviamente, o leitor é convidado a fazer um esforço de imaginação para contemplar cada detalhe do que se lê. É necessário uma preparação da memória, da fantasia e da expressão verbal correspondente para ser capaz de sondar o mundo de experiências que está por baixo de cada trama, de cada relação e de cada evento. Por outro lado, diante do universo audiovisual, boa parte desse esforço é dispensável, pois salta aos olhos e ouvidos um conjunto abundante de experiência deixando para o sujeito apenas o zelo de criar uma relação lógica dos fatos ocorridos.
Diante de uma época onde o espetáculo é consumido 24 horas por dia, orientado pela publicidade, pela mídia, pelo marketing, a sedução da imagem fala mais alto que a sutileza das letras. Preferimos o encantamento dos simulacros a ter de encarar o teatro perturbador de Shakespeare. Temos de fazer um retorno aos clássicos da literatura mundial, um verdadeiro diálogo com os mortos, e experimentar todas as mortes narradas tanto por poetas, escritores, roteiristas e quem mais queira entrar neste ofício. Assim, poderá haver um diálogo vibrante entre imagem e a palavra. Um diálogo que cria em nós uma abertura para uma viagem da alma. Uma viagem com todas as volubilidades de qualquer viagem; às vezes negra e gelada, às vezes bela como um dia de sol.
©2016 Lindiberg Mustang
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O que é arte?

Um baile de sombras

domingo, 7 de agosto de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
Quando imitamos alguém isso revela um profundo desejo de querer ser essa pessoa. Ou seja, de viver, entender, ou internalizar as mesmas experiências que moldaram tal personalidade. De algum modo todos nós passamos por isso, quando lemos uma biografia, ou quando ouvimos algum músico, ou até mesmo quando assistimos a um filme. A imitação como um amparo instrumental é essencial para o aprendizado seja do que for, e de forma mais densa, nos leva à maturidade; é o que se passa quando encaramos pensamentos de gente como Nietzsche, Tolstoi ou um Chesterton da vida.
O problema é que a falta de caráter de nossa época tem produzido quilos e quilos de sujeitos que se contentam apenas com a imitação enquanto tal — elas não querem participar do mesmo drama, não querem ser, elas só querem parecer —, não acreditando na realidade mas apenas na encenação. Isso me lembra Machado de Assis em seu conto A teoria do medalhão, onde um pai aconselha seu filho dizendo que o que é realmente valioso é a aparência. Assim, o autor demonstra o caráter artificial dos círculos da sociedade em que ele mesmo viveu.
Hermann von Keyserling, filósofo alemão que passou parte de sua vida viajando pelo mundo, ao chegar no Brasil constata em seu diário esse mesmo fenômeno entre a elite brasileira. Ele concluiu que os brasileiros se satisfaziam tranquilamente se colocando no mundo apenas como simulacros: uma cópia imperfeita do que é real.
Isto nos explica muita coisa, porque é justamente esse comportamento que observamos em todas as dimensões de nossa cultura. Praticamente importamos todo tipo de ideias dos gringos: as músicas, programas de TV, enredos de novelas, gírias, moda, modinhas de rede social, etc. Com a diferença que tudo nos chega como uma cópia mal feita.
Tomemos rapidamente como exemplo o mundo gospel da metade do século XX até hoje. Importamos o neopentecostalismo com o mesmo formato de pregações e as mesmas ênfases na administração, na entonação da voz, no dinheiro, no sucesso. A imitação foi tão bem sucedida que não parou aí. A música gospel, sempre no lugar comum, recheado de bandas e artistas como Diante do Trono, André Valadão, David Quilan, Talles, Fernandinho, Aline Barros, parece ser repetições ou até mesmo plágio de bandas e artistas como Hillsong United, Planetshakers, Lifehouse, U2, Toby Mac, Jeremery Camp, Brooke Fraser, etc. Não questiono o talento desses músicos, mas a coisa é tão mal feita, que introduções musicais, riffs, solos, efeitos, performace, tudo isso chega aqui com adaptações e simplesmente estacionam nesse lugar comum. Não há uma busca por uma identidade ou originalidade. É apenas a imitação pela imitação.
A imitação deve ser cultivada como instrumento pedagógico para a aquisição de uma habilidade em que se possa encontrar a própria identidade do indivíduo. Mas em terras tupiniquins, a imitação se transformou num recurso para se atingir apenas o brilho social — é o mimetismo em sua função mais vulgar, que decorre do simples fato de seus meios serem, ao mesmo tempo, o seu fim.
Há de se abandonar esse culto à imagem e ao espetáculo das representações, pois como afirma Debord, o espetáculo “não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo”. A construção de uma identidade própria a partir da imitação mimética é essencial para evitar que o sujeito não seja consumido por uma falsa consciência. Assim, essa identidade não será apenas a impressão que você quer dar, mas também uma expressão real do que você é.
Mas as pessoas, os brasileiros, eu, tu, ele, nós, vós, eles, vivem numa espécie de palco de teatro e tudo que sabem é atuar. Habitam o mundo contemplando as estrelas como se o ser humano se encontrasse abandonado às traças divinas, sem forças para escalar até o céu na busca de algumas respostas. Como o mendigo do romance Quincas Borba, de Machado de Assis, estirado nos degraus da igreja fitando o céu como se quisesse dizer: “Afinal, não me hás de cair em cima”. E o céu: “Nem tu me hás de escalar”.
Neste mundo abandonado por nós mesmos somente os corajosos encontram respostas. Somente os bravos conseguem ultrapassar esse jogo de imitações para alcançar a serenidade do ser. A imitação deve ser superada pela força da personalidade individual, caso contrário, continuaremos a admirar toda a vida social ser determinada por esse baile de sombras que se tornou nosso país, cheia de pessoas famintas por títulos, cargos, dinheiro e sucesso; constroem um edifício emocional insustentável como finalidade da existência humana, transformando a vida numa triste narrativa sobre a terra; tudo isso entorpece a alma e nubla nossas percepções sobre a bondade e a verdade.
Penso que a vida humana não precisa ser um teatrinho, que pode ser integralmente real, que um homem pode passar do autoengano das imitações para uma existência verdadeira. Pois é assim que o mundo é vencido: pela firmeza de pessoas que não se deixam levar pelo fascínio das encenações. Fascínio este que se assemelha a um abismo de espelhos, que paralisa, e dificulta uma verdadeira comunicação entre o próximo, porque é disto que se trata também.
Falar sobre isso é complicado se considerarmos que estamos inseridos numa sociedade industrial que produz infelicidade generalizada e felicidade superficial em igual modo. O drama da sociedade atual é que o comportamento de massa dá origem a vidas de massa, gerando uma existência efêmera que produz um ser covarde. Segundo Heidegger, só poderíamos ir além das máscaras eliminando o acidental e o trivial, concentrando-nos no cerne do ser humano; ou seja, tendo consciência de nossa finitude e nos libertando da superficialidade que a vida nos apresenta. Dessa liberdade brota coisas importantíssimas. Verdadeiros milagres, como por exemplo, a gentileza com o próximo, a sinceridade com nós mesmos, ou a lucidez necessária para se discernir as sombras.
©2016 Lindiberg Mustang
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A ilusão democrática

sexta-feira, 24 de junho de 2016 Postado por Lindiberg Mustang

A manipulação deliberada e inteligente dos hábitos e opiniões organizados das massas é elemento fundamental de uma sociedade democrática. Os que manipulam esse mecanismo oculto da sociedade constituem um governo invisível que representa o verdadeiro poder dirigente do nosso país.
Somos governados, nossas mentes são moldadas, nossas preferências formadas, nossas ideias sugeridas em grande parte por homens dos quais nunca ouvimos falar.
[. . .] Em praticamente tudo que fazemos na vida diária, seja na esfera política ou nos negócios, seja em nossa conduta social ou convicção ética, somos dominados por um número relativamente pequeno de pessoas que entende os processos mentais e padrões sociais das massas. São eles que puxam os cordões que controlam a mente do público, que canalizam antigas forças sociais e encontram novos modos de amarrar e conduzir o mundo.

Eduard Bernays, sobrinho de Freud, no seu livro Propaganda, de 1928. Para entender melhor o que acabou de ler — e ter certeza de que isto não é um sonho — recorra a este documentário deveras esclarecedor: O século do eu.
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Como a Igreja virou igrejas

terça-feira, 24 de maio de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
O princípio da Igreja é fantasticamente simples e muito bem elaborado. A Igreja era vista como uma simples reunião, e não passava disso. Uma reunião que com o tempo virou uma comunidade, não por que todos eram iguais, mas simplesmente por que todos compartilhavam do mesmo ideal: “convencer o mundo do reino de Deus” inaugurado pelo Cristo (Atos 19.8, 28.23).
Sem pretensões de grandezas ou de algum tipo de ascensão política, os primeiros cristãos se gloriavam em suas tribulações, se identificavam com os pobres, amavam-se mutuamente; dividiam seus bens com os mais necessitados sem nenhuma ambição de acúmulo de posses. A Igreja se constituía no mundo como essa comunidade em fluxo e não como uma instituição fixa e paralisante que faz de Deus um ídolo.
Igreja se compreendia como um corpo que se reunia nas casas, numa escola e até mesmo em cemitérios (Rm 16:5,23); se reuniam como Igreja e não nas igrejas, pronunciando a Boa Nova, convidando o mundo a ser, e não a ter Igreja. E os que resolviam ser, consideravam-se como aqueles do Caminho somente (Atos 9.2, 19.9, 24.14). O projeto de Jesus estava se concretizando. Seu reino — evidenciado pela existência física da Igreja — era visto continuamente como o Caminho: um lugar sem endereço determinado, uma direção da qual Jesus não marcou um ponto de chegada.
Infelizmente esse quadro não persistiria por muito tempo. Aproximadamente três séculos depois, o imperador Constantino, que era adorador do deus sol, executou uma jogada de marketing político ao se converter ao cristianismo. Não foi uma conversão autêntica e, como o Império era marcado por uma cosmovisão politeísta, era comum cada deus ter o seu templo de adoração. Jesus não tinha um templo, logo, resolveram edificar um lugar respeitável para que o Filho do Homem fosse venerado, assim como os outros deuses. Com o templo nascem também hierarquias bem definidas, os dogmas irredutíveis, a centralização do poder religioso, a aliança com a política, etc. O Caminho começou a virar estradas e o Reino logo se identificou com o Estado. A comunidade orgânica do Evangelho foi substituída por instituições que mecanizou comportamentos, entorpeceu consciências. Nessa esfera o amor é suprimido, a graça é violentada, sobrando apenas exigências de um Deus distante que precisa ser temido, semelhante aos deuses gregos.
A partir de então deram início a construções grandiosas de catedrais e templos gigantescos, com uma arquitetura que seguia o mesmo modelo das basílicas e das sedes governamentais de Roma. As catedrais foram variando de acordo com as ocasiões contextuais na história. No início eram semelhantes aos templos greco-romanos, passando a ser idênticos a palácios de reis. Edificações monumentais que atravessaram séculos como uma das boas heranças deixada pelos medievais; uma herança que ainda hoje nos enche os olhos.
A construção de templos na Idade Média foi algo espantosamente magnífico, pois exalava arte, e a beleza era cultuada como um fenômeno transcendente. Através da arte e da beleza podemos ver Deus nos templos antigos, como uma tentativa de capturar a natureza de uma experiência que não encontramos mais nos dias de hoje — pois a arte está em guerra com seu passado. Com a chegada do capitalismo e a pós-modernidade, castelos foram substituídos por shoppings e as igrejas tornaram-se um reflexo dessa cultura que a imita tanto em sua estrutura externa (estética) quanto interna (administrativa) — só distinguimos um shopping de um templo evangélico por causa da placa e tanto um quanto o outro está interessado somente em vender um produto, ou fazer de você um produto. Bem, parece-me judicioso deixar claro que as exceções estão aí, e que generalizar não é um caminho apropriado.
Com o advento da Reforma, o próprio Lutero tentou evitar que essa patologia de grandeza continuasse. Mas como podemos observar, as pessoas ainda insistem em edificar uma morada aconchegante para Deus, e a cada dia que passa perseveramos incansavelmente em confundir templo com Igreja. Essa confusão gera no indivíduo o sentimento de segurança, de proteção, de garantia de barganhas que o afasta da verdadeira experiência mística com o Cristo ressurreto. Uma experiência marcada por uma liberdade que arrasta o indivíduo para um mundo hostil e sem garantias, onde todas as convicções, autoridades e até mesmo o próprio sujeito passa pela peneira da dúvida e do questionamento. Esse é o carimbo da fé na consciência, que isola o indivíduo, que o individualiza e o torna único diante de Deus. As igrejas, ao contrário, insere o indivíduo na multidão, diluindo sua consciência na massa; todos orientados a encenar o mesmo ritual, diante da mesma linguagem, falando o mesmo dialeto. Nesta atmosfera, o questionamento e a dúvida são totalmente esmagados.
A necessidade de um lugar de adoração a Deus não é o que entra em questão aqui. Podemos ter um lugar, um templo, no entanto, há de se cultivar a consciência de que é apenas um lugar como qualquer outro. Não é o lugar que é o problema, mas sim a demarcação entre “sagrado e profano” a partir do lugar. O questão é condicionar Deus ao lugar, criando um ser sagrado à nossa imagem e semelhança. Assim, o problema do lugar se constitui através da burocracia implantada fazendo da igreja a ponte exclusiva entre Deus e os homens — se não é a ponte, no mínimo está no meio do caminho cobrando pedágio.
Nesse sentido, as intenções do Nazareno foi desmantelar toda essa marca deixada pelas religiões ocidentais, pois a noção de templo era concebida antes mesmo de Israel existir como nação — ou seja, o templo não é uma invenção judaica, mas sim pagã, que se constituiu no mundo antes mesmo de Moisés fincar o primeiro alicerce do Tabernáculo no deserto.
O que os religiosos viam como um ponto de encontro para um relacionamento com Deus, Jesus enxergava um salto para a legalidade como um reflexo da paixão humana pelo controle e segurança. E ele demonstra isso através de histórias como aquela do bom samaritano, em que os que eram ligados à instituição (o levita e o sacerdote), foram justamente os que negaram caridade ao necessitado.
Portanto, Jesus começa a demolir todos os trâmites da religião institucional, mostrando que Deus se revela de forma autêntica não nos rituais, pois pra ele a verdadeira epifania é o grito do oprimido (Mateus 25:42-45). Ou seja, Deus não cabe dentro de definições engessadas, como se a teologia estivesse pronta e acabada. Aliás, Deus não cabe dentro de definição nenhuma. Ele é o Indefinível. Definir é por limites; definir Deus é o mesmo que marcar um começo e um fim para o Infinito.
Ora, hoje qualquer cristão está informado de que igreja somos nós. O que não se pode observar é essas mesmas pessoas internalizando e vivendo isso até às últimas consequências, que seria a simples tentativa de viver como Jesus: viver em um mundo amando pessoas e não placas. A proposta é realmente voltar ao princípio, à simplicidade do Evangelho. Talvez seja uma postura radical e perigosa demais para almas de porcelanas, que encontram em suas denominações um lugar aconchegante, um modo de blindar suas crenças sem precisar encarar o frio e o terror de uma existência autêntica, onde o mundo é encarado com todas as suas contradições.
Sinclair Lewis, em seu romance Elmer Gantry, ainda na década de 1927, conseguiu ser bem mais impetuoso, mais dramático, e mais ousado — de uma forma que eu jamais poderia ser. Um apelo que reflete bem a situação em que as igrejas chegaram, e que discerne de modo decisivo como é uma igreja que deixa de ser Igreja:
Ninguém neste recinto, incluindo o seu pastor, acredita na fé cristã. Nenhum de nós daria a outra face. Nenhum de nós venderia tudo que tem e daria aos pobres. Nenhum de nós daria o casaco a um sujeito que tivesse tirado nosso sobretudo. Cada um de nós acumula todo o tesouro que consegue. Não praticamos a religião cristã e não temos qualquer intenção de praticá-la. Logo, não acreditamos nela. Eu portanto me desligo, e aconselho vocês a pararem de mentir e se dispersarem.
©2016 Lindiberg Mustang

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A supremacia da igualdade

quinta-feira, 5 de maio de 2016 Postado por Lindiberg Mustang

Jesus foi o único homem que recebeu a pura revelação de Deus e a transmitiu de forma igualmente genuína. Por isso não faz sentido separar o modo como Jesus enxergava o mundo e a realidade, apresentada nos evangelhos, do modo como os apóstolos assimilaram essa mesma realidade ao escreverem suas cartas no decorrer do Novo Testamento. Digo isso, porque, como Paulo Brabo acentua muito bem, “parece que existe uma fratura que separa as duas porções do Novo Testamento — de um lado os quatro evangelhos, do outro todo o resto”; um abismo mais profundo do que aquele que separa o Novo Testamento do Antigo.
O que Paulo disse, escreveu e ensinou foi acolhido pelos cristãos de forma tão apaixonada ao ponto de não ser mais possível intuir a simplicidade do Cristo nos quatro evangelhos. Não acredito que existam disparidades entre o que Paulo escreveu e o que Jesus disse, mas penso que haja dessemelhanças profundas entre boa parte dos cristãos e a unidade do Evangelho, que compõe todo o Novo Testamento.
Se me permitem, uma dessas dessemelhanças é em relação à sexualidade e — num contorno mais estreito — em relação à mulher. A maioria das culturas antigas foram desenvolvidos mecanismos para legitimar a superioridade do macho, e isso é ilustrado explicitamente no judaísmo: no templo, as mulheres não podia se aproximar do Santo dos Santos e a desigualdade nas sinagogas era delimitada da mesma forma: as mulheres tinham que manter uma distância semelhante na hora do ensino. Numa sociedade em que um homem não conversava com mulheres em público ou em que um rabi jamais se deixaria ser tocado por elas, Jesus, além de não dar bola pra isso, teve um atrevimento sob medida para romper com toda essa tradição, resistindo qualquer tipo de tentação de legislar algum tipo de norma para as ralações interpessoais.
A postura de Jesus é delicada e aparentemente o apóstolo Paulo nada tem a dizer sobre isso. E se Paulo nada tem a dizer, que dirá então a igreja dos séculos seguintes, que preferiu cortejar, através de uma afinidade ideológica, bem mais os refinamentos filosóficos paulinos do que a simplicidade de Jesus ao tratar a vida. Paulo parece ter entendido a radicalidade de Jesus de maneira mais acanhada; ele não titubeia em dizer que o homem é o “cabeça” da mulher; instruiu que as esposas devem ser submissa aos maridos e não diz nada contra a escravidão em si. A igreja, mais apaixonada pelos discursos teológicos de Paulo, optou por conservar a mesma estrutura da superioridade do macho. Agostinho (354-430 d.C.) opinava seriamente que o homem é feito à imagem de Deus, mas não a mulher. Tertuliano (160-220 d.C.) determinava que as mulheres reconhecessem ser o “portão do inferno”, “responsáveis pela entrada do pecado no mundo e pela morte do Salvador”.
A mera passagem do tempo não parecia melhorar as coisas. Mil anos depois de Tertuliano, Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.), influenciado pelo caráter aristotélico de enxergar a realidade, concebia a mulher como “um homem malfeito”, não possuindo uma alma racional — uma criatura apenas para “assistir com a procriação”.
Apesar disso, o cristianismo é sem dúvida a primeira religião a favorecer uma visão romântica da mulher, principalmente depois da veneração de Maria — uma reverência superestimada já no quarto século da cristandade. Maria era a personificação da bondade, da afeição e da benevolência: a mãe de Deus. Uma marca que de certo modo seria compartilhada por, abre aspas, todas as mulheres, fecha aspas. Paulo Brabo nos lembra de que a mulher medieval — e posteriormente a mulher moderna —, do dia a dia, era impura e “com frequência vilipendiada, segregada e usada como bode expiatório". Mas a maldade não é privilégio dos homens; e as mulheres podem produzir, e efetivamente produzem, como qualquer ser humano, tanta crueldade quanto. Há inúmeros registros sobre isso, inclusive em histórias bíblicas como de Jezabel, ou da mãe que devora seu próprio filho para não morrer de fome (2 Reis 6.29), também justificava certo ar de repugnância.
A despeito disso tudo, não penso que essa história se resume em algum tipo de conspiração de homens para explorar as mulheres. Penso nisso mais como um arranjo cultural desenvolvido organicamente. Não quero dizer que é eticamente certo agir assim, mas uma cultura não é uma entidade ética. Não é disso que se trata. E claro, o comportamento dos membros de uma sociedade que ilustram suas relações através de jogos sociais de poder deve ser mudado. E por pensar assim, as atitudes de Jesus foi um choque para sua época, e um chamado para que todos recusem e abandonem os mecanismos de controle e manipulação que este mundo produz. Assim, o reino de Deus se prefigura como uma fraternidade de irmãos que renunciam contundentemente qualquer forma de dominação, especialmente quando se trata de mulheres.
O rabi de Nazaré foi o primeiro que elegantemente tratou de minar essa ideologia da supremacia do macho; recusou-se a endossar a característica de um macho dominador começando pelo fato dele não ter sido casado. Uma escolha voluntária no mínimo singular pra época, principalmente pra quem desejava ser um mestre espiritual. Para um judeu, casar era uma indicação básica de masculinidade e portanto de valor. Jesus deixou claro que seu valor não estava fixado na postura de ser um provedor ou reprodutor. Ao contrário, por vezes o seu sustento foi promovido por mulheres.
O que não pode ser dito dos homens daquela época é que Jesus não só se sentia à vontade diante das mulheres — para visita-las, ensiná-las, bater um papo na beira de poço — mas também saiu em defesa delas. Ao tomar partido de uma mulher apanhada em adultério, Jesus prediz não só um reino de igualdade — pois somente a mulher iria ser punida —, mas também um reino onde a misericórdia suplanta todo juízo diante do pecador. O amor sempre fala mais alto que a justiça da Lei. É disso que se trata. Nada permanece o mesmo depois de ser tocado pelo amor.
Diante disso, o que Jesus fez foi pregar a igualdade entre homens e mulheres dois mil anos antes desta questão virar pauta ideológica. O feminismo obscurece o assunto quando acentua e radicaliza a igualdade negligenciando as diferenças (biológicas, psicológicas, simbólicas, social), enquanto a ideologia da superioridade do macho acentua e radicaliza as diferenças na medida em que negligencia a igualdade. O Evangelho, por outro lado, realça que homens e mulheres são iguais em termos de humanidade. É nessa consciência que Jesus anuncia essa boa nova.
Para os escritores do Novo Testamento essa boa nova soou como uma mensagem essencialmente universal. Paulo, da qual a igreja salientou somente suas recomendações truncadas, sobre as mulheres permanecerem caladas nas assembleias e submissas como afirma a própria Lei, escandaliza os ouvintes de sua época ao afirmar que “em Jesus não há judeu nem grego, nem escravo nem livre” — e pasmem — “nem homem nem mulher” (Gálatas 3.28). A supremacia do macho se desfalece diante da destruição do muro que separa os homens, pois todos formam uma unidade em Cristo. Paulo também coloca a mulher em pé de igualdade marital dizendo que “a mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o marido; e o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim a mulher”. A visão de casamento tradicional também foi minada por Jesus quando resgatou o arquétipo do Gênesis do “serão um só corpo”, onde o amor seria o laço dessa união. Um laço tão bem amarrado que Paulo não hesita em dizer que os maridos devem estar prontos para morrer por suas esposas.
Essa igualdade está explícita simbolicamente na descida do próprio Deus ao nível do ser humano. Deus se encarna de modo que todos puderam olhá-lo nos olhos, face a face. Essa é a manifestação mais formidável, reforçada em todo o Novo Testamento, de que a horizontalidade do amor de Deus é um terremoto que faz desabar todos os mecanismos de controle e manipulação que sustenta a ordem desse mundo. Esta é a revolução do reino: encarar as desigualdades fincadas na ganância, na superioridade moral, na hierarquia, na expropriação do mais fraco, enfim, encarar tudo isso na consciência de que a graça é uma força mais poderosa do que o ódio, que rompe todas as relações disformes entre os homens.
©2016 Lindiberg Mustang

Meu mundo ideal

domingo, 21 de fevereiro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
A noção de se reencarnar me parece demasiadamente infantil — uma hemodiálise existencial sem qualquer racionalidade metafísica. No entanto, o pensamento de voltar ao passado sempre me perturbou. Minha imaginação já fabricou ideias fantásticas sobre esse tema. Admito, voltar ao passado é minha obsessão. Mas não aquele passado medieval ou renascentista — estes também me causam certo saudosismo —, mas aquele passado da minha infância, onde as ideias pareciam ser mais originais; onde os cortes de cabelos eram menos extravagantes e vagarosamente mais ousados; os shorts da molecada eram todos acima dos joelhos e deixava uma sensação de mais liberdade; sem contar com aquelas excêntricas roupas que coloriam a cidade na pequena pracinha aos finais de semana.
Minha infância é meu mundo ideal, e como disse Paulo Brabo: “O presente, senhoras e senhores, é uma afronta e uma piada. Somos a continuação medíocre, a parte 2 que o bom senso não deveria ter deixado chegar aos cinemas. Somos o capítulo mais fraquinho de uma série de ficção científica que o roteirista não tem mais criatividade ou saco para terminar”. Algo como The Walking Dead ou Lost.
O presente não é meu mundo. Isso porque o presente parece ser o lugar nenhum: o nada é o fruto dessa pós-modernidade. A modernidade fracassou em querer resolver os problemas da humanidade; inseriu no mundo deuses como a Ciência, a Política, a Natureza, a História. Por isso acho equivocada a concepção popular de que o homem moderno se tornou completamente secularizado. Invés disso, acredito que criou apenas novas expressões religiosas. Não é de se espantar que nossa civilização, na ânsia de superar o discurso religioso — tido como uma ideia atrasada e obsoleta —, se desague em pleno século 21 prestando culto à extraterrestres (os deuses astronautas do History Chanel) e cristais “mágicos” do movimento New Age. 

O que dizer de Einstein, Heisemberg e Planck? Onde estão homens como Freud, Jung e Husserl, que conseguiam discernir o mundo? O que eles nos ensinam hoje? Coisa nenhuma, pois os trocamos por fast-foods, iPhones e redes sociais. Tudo isso, aparentemente, atende perfeitamente as condições necessárias da imaginação moderna, nublada por crenças grosseiras que substitui a angústia de um desejo autenticamente espiritual.
Como pensava o filósofo Edmund Burke, o verdadeiro pacto social é estabelecido entre os mortos, os vivos e os que ainda estão por nascer. O que gente moderninha não entende é que, quando os mortos não valem nada, ninguém vale nada. É o respeito pelo passado que nos faz caminhar decentemente para o futuro. O século 21 nasce habitado por gente que acredita que o mundo em que elas vivem nasceu prontinho; caminham sobre a história desconhecendo e desrespeitando o passado, incapazes de perceber que a ordem social se estabelece no tipo de mundo que você recebe dos seus pais e avós e o tipo de mundo que você entrega para seus filhos e netos.
Não se enganem, o futuro é uma distopia e se reencarnar seria o pior de todos os tormentos. É acreditando nisso que faz meu pai viver longe desse padrão de vida que orienta o consumo de todos hoje em dia. Meu pai ainda hoje — apesar de morar na capital tocantinense — prefere levar a vida de forma simples, andando na mesma bicicleta a mais de vinte anos, fazendo as próprias refeições, usando seu celular exclusivamente para fazer ligações, e raramente chega a perder um episódio d’A Praça é Nossa; os maiores valores que me ensinou foram através do exemplo — porque é assim que tem que ser — e sem muitas palavras.
Assim, meu apelo neste mundo é exclusivamente por independência, para que, assim como meu pai, todos busquem sua liberdade e não se deixem escravizar por trivialidades sem sentido e, finalmente, para que as pessoas façam suas conexões uns com os outros — como se fazia antes da internet, quando todos entendiam que viver era melhor do que postar. Não sou ingênuo o bastante para achar que isso vai acontecer. Bem, talvez essa seja minha irresistível obsessão de querer voltar ao passado.
©2016 Lindiberg Mustang

Funk, a cultura do horror

terça-feira, 19 de janeiro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
Ao ler alguns textos em defesa do funk carioca, percebo que as conclusões sempre se desembocam em duas premissas: I) funk é cultura igual todas as outras; II) criticar o funk como expressão musical de muito mau gosto e chulo, é nada mais do que racismo.
Leitores, leitoras e indecisos, não há problema em identificar o funk como uma manifestação cultural. Segundo o primatologista holandês Frans de Waal, até os símios são reconhecidos por suas expressões culturais — que dirá um funkeiro. Ou seja, o problema é identificá-lo como uma expressão cultural no mesmo plano de todas as outras. Para os vampiros do politicamente correto, Chico Buarque é um gênio da música, no entanto, ele não é melhor que Mc Carol (WHAT?), pois “sua genialidade depende de qual é o grupo social/cultural que o avalia”. Dessa forma, é impossível dizer quem é melhor culturalmente.
Ora, no campo do entretenimento, o funk se evidencia como qualquer outro produto musical a ser consumido. Nesta dimensão, Chico Buarque não é diferente nem mesmo do mofado fenômeno Mr. Catra, pois os dois produzem algo ao gosto do freguês. A dificuldade de compreensão sobre este assunto reside na atitude de querer elevar o funk, igualando-o à bossa nova, por exemplo, num sentido de valor. Para os defensores do funk, a ideia de “qualidade cultural nada mais é que uma utopia vinculada às subjetividades dos agentes avaliadores”. Essa concepção, levada às últimas consequências, cai como uma manga podre no chão de um relativismo completamente irrefletido, chegando as raias da indecência de promover o funk a algo sumamente “belo” — é por isso que só quem não é do ramo ainda leva as ciências humanas 100% a sério.
A beleza não pode ser concebida como algo relativo. Não é como uma laranja que, entrando em contato com o paladar, se revela azeda para uma pessoa e suavemente doce para outra. A beleza é uma intensa fricção com a realidade e aloja um valor em si mesmo, um valor tão importante quanto a verdade ou o amor; transcende nossas aspirações subjetivas, se evidenciando também numa necessidade universal do ser humano. Ou seja, o belo é belo independente de nossa compreensão sobre este fenômeno; assim, quando alguém ler Shakespeare e não gosta, o problema nunca está em Shakespeare, pois ali se expressa uma realidade universal que toca no cerne da alma humana, gerando uma singular disposição para coisas mais elevadas. Isso só pode ser percebido através de um exercício contemplativo, porque vai além de uma orientação de entretenimento.
Talvez Shakespeare não tenha sido um homem melhor — algo que duvido muito — que Mr. Catra, pois ambos estão debaixo da mesma condição humana. Porém, Shakespeare produziu algo maior que si mesmo, assim como Tom Jobim; foram além da simples criatividade, conseguindo mostrar o real sob a luz do ideal. Essa é a característica de um verdadeiro artista: realizar algo que transcende suas próprias paixões; fazer de seus tormentos existenciais, limitações e deficiências a mais bela expressão do Eterno. Certamente, é neste ponto que reside o que poderia ser chamado de “qualidade cultural”.
Na medida em que a democracia gerou o prenúncio desagradável de que é ameaçador julgar o gosto de outra pessoa, este assunto começa a ser deveras aborrecedor. No entanto, o relativismo cultural, de achar que o funk tem em si o mesmo valor artístico de uma música clássica, ignora qualquer critério das tradições artísticas de nossa cultura. O funk aliena-se como um fenômeno de sua própria época ao rejeitar o retorno às raízes mais profundas da tradição ocidental, sendo incapaz de ter qualquer diálogo com grandes artistas de outras épocas.
Na filosofia, autores como Kierkegaard, Nietzsche e Marx fazem uma contestação à tradição, porém, apesar dessa ruptura, eles ainda assim se manteram integrados na mesma tradição; endossaram no horizonte de suas formulações uma aspiração de totalidade. O diálogo com a tradição é justamente o fundamento de um imperativo moral; é entender que os antigos tendem a ter mais consciência da fragilidade das normas do que as sociedades “sofisticadas”, que resolveram acreditar em “novas superstições” destituídas de valores e ideias. Penso que muita coisa na tradição deve ser desconstruido mesmo, no entanto, o que não devemos perder de vista é que há na tradição pontos universais que nos faz identificar algo além desde mundo.
Assim, o funk se apresenta como cultura somente numa dimensão bem particular: como um instrumento de mobilidade social, onde cristaliza em si uma desvalorização dos valores, que termina em levar as massas a consumir cultura na forma de diversão. Não encontramos beleza nisso — ou seja, aquela pulsão da realidade que converge o horror, o caos e a dor em uma lúcida expressão espiritual. Como afirma o filósofo inglês Roger Scruton: “o acontecimento mais banal pode se transformar em algo belo, por um artista que pode ver o coração das coisas”.
A beleza faz das coisas vis uma entonação da nobreza; enquanto o funk carioca percorre o caminho oposto, fazendo o que é belo (a mulher, a dança, sensualidade, amizade, o amor, etc.) se transformar num culto ao horror, com todas as suas consequências morais. O efeito disso surge nas aspirações dos indivíduos, solapada pela cultura de massas e padronizada pelos desejos da multidão — desejos enobrecido de validade como expressão dos “anseios de nossa época”.
Esses anseios, alinhados à cultura de massas, manifestam-se pela tríade sexo-dinheiro-fama, que exprime perfeitamente, quase em sua totalidade, os principais hits do funk. Disso consiste uma completa inversão de valores: as paixões mais baixas e vulgares são exaltados como o padrão a ser desejado, condicionando as pessoas a um energético desequilíbrio interior. Tudo isso acaba por anular todo o senso de significado espiritual da realidade e, desse modo, o funk cumpre seu papel: associando a ideia de ser jovem com a de ser um imbecil.
Nietzsche dizia que a beleza fala em voz baixa, penetrando somente nas almas mais despertas. Ou seja, o discernimento para a beleza ou o desejo de intuir o belo em sua essência não é inato no homem. Não é uma capacidade que nasce pronta, mas sim uma tendência natural que precisa ser desenvolvida na alma humana, assim como a capacidade de caminhar por si próprio. 

Diferente de uma mera introjeção de papeis sociais, esse talento se mostra à luz de uma capacidade pré-existente. É assim também com as experiências religiosas. A fé é apreendida sempre através de um processo progressivo, que precisa ser entendido e desenvolvido para aquilo que é eterno. O contato com a beleza percorre o mesmo caminho, pois no final das contas nossa experiência religiosa é também uma experiência estética — não por acaso há momentos em que somos arrastados desse mundo ordinário de nossas paixões para uma esfera especialmente contemplativa. Momentos estes que nos faz ver que a vida vale a pena.
Em relação à segunda objeção, de que quem critica o funk carioca é racista, por ser uma cultura de gente pobre e negra, não chega a ser um argumento. No máximo um desabafo retórico. Racismo é uma agressão moral e só uma pessoa pode ser agredida moralmente. As discussões sobre o funk gira em torno de um estilo musical; a decadência de um estilo musical que almeja ser elevado como arte. Um estilo musical da qual boa parte de seus representantes são… brancos. Dizer que quem censura o funk é racista soa tão coerente quanto dizer que quem critica a física de Einstein é nazista. As duas conclusões são pateticamente tolas, condicionados por uma reflexão ideológica sem nenhum compromisso com a verdade. Ah, a verdade! Quem se importa com ela dentro desse caldo pós-moderno que virou nossa sociedade?
Em suma, no mundo onde todos os conceitos se derretem, o funk é a plena expressão da pós-modernidade, representada em toda sua aleatoriedade e desordem. Nesse mundo as relações são medidas apenas pelo utilitarismo, tornando a beleza uma mera mercadoria — e de muito mau gosto, certamente. O relativismo é erguido como a bandeira filosófica que satisfaz o gosto de todo mundo. Sacia o desejo intelectual de toda alma tímida e covarde que se recusa a dar um mergulho sincero no mar do conhecimento. São incapazes de suportar a angústia de ter que encontrar uma unidade — a verdadeira substância das coisas — em um mundo onde a maioria se importa apenas com suas próprias paixões. Diante disso, estou convencido de que a beleza — distraído leitor — ilustra nada mais do que uma forma subversiva de ler o mundo, dando sentido a ele.

©2016 Lindiberg Mustang