O clima pós-moderno
quarta-feira, 22 de março de 2017
Se alguém quiser saber o que se passa na presente fase da história humana chamada “era da incerteza” (uma ideia que permeia o mundo desde a metade do século 20), é obrigado a desenvolver uma habilidade que seja capaz de penetrar e discernir todas as camadas dos discursos pós-modernos — agora rebatizado de “pós-verdade”. Ortega y Gassete dizia que “cada época é como um clima, que predominam certos princípios inspiradores e organizadores da vida”. O período pós-moderno, que vive um momento de luto da razão como instância de significado, é responsável por dar (ou suprimir) sentido ou criar narrativas a toda concepção de mundo enraizada em alguma certeza ou verdade: não há como ter certeza de nada porque tudo depende de nossa concepção subjetiva sobre a realidade. As pessoas discordam entre si e se dispõem de interpretações profundamente diferentes acerca do que significa viver neste mundo. Este é o princípio organizador de nossa época, nosso “clima”.
A ideia de pluralidade de percepções
e de que cada indivíduo dá um significado circunstancial para o modo como olha
a vida não é totalmente equivocado, e é coerentemente assentada na filosofia,
na literatura, na política, na cultura, e também na teologia — um campo do
conhecimento que ainda tenta conservar um status de pureza. Obviamente existe
essa dimensão de incerteza da realidade fincada nos paradoxos e tão bem
explorados por Nietzsche e Kierkegaard, mas essa concepção não contempla o todo
da realidade; é apenas uma camada desta. Platão e Aristóteles captaram esta
dinâmica da realidade, no entanto mergulharam mais fundo a ponto de vislumbrar uma
unidade nisso tudo; não uma unidade simples, mas unidade do diverso, como em
tudo que é real e vivente. Não chegaram a essa conclusão de modo vulgar, pela
simples coerência lógica e mecânica, mas como uma tendência, uma disposição da
própria diversidade a uma finalidade que tudo abrange.
Pensar o mundo como uma unidade não
quer dizer que seja possível uma descrição total da ordem cósmica, pois este
ato heróico está para além da estrutura da existência humana — nem mesmo a
união de todas as religiões acompanhadas de todas as ciências poderia nos dar a
condição de desenvolver uma descrição total da ordem cósmica. A realidade,
senhoras e senhores, é formada por tempo, espaço e dimensões cosmológicas que
fogem do nosso entendimento. Não obstante, mesmo com uma percepção fragmentada,
é inegável não presumir que o Universo constitui alguma ordem que não depende
do ser humano, pois é dentro dela que surge o homem; há, sem dúvida, elementos
de desordem e de caos, contudo, esses elementos absurdos precisam estar
presentes.
Quando não há a possibilidade de se
emudecer diante da ordem cósmica, de calar e se abrir para o que existe
efetivamente fora de nós, o que resta é profetizar o lamento relativista de que “o homem é que cria a realidade”. Ou seja, essa é aquela perspectiva kantiana de que o olhar é o que determina a imagem; a ideia de que vemos os objetos, por exemplo, no espaço e
no tempo não porque espaço e tempo são partes do próprio mundo, mas porque são
partes do nosso aparato humano para conhecer. Hegel critica essa concepção da epistemologia de Kant afirmando que o
indivíduo é essencialmente definido pela capacidade universal da razão e não
pela individualidade do sentimento ou da percepção dos sentidos, que isola o indivíduo da esfera objetiva. Ao definir razão, Hegel vai além, entendendo-a como o conjunto das leis do pensamento e criadora da realidade, isto é, o real é obra histórica da razão. Assim, podemos remontar o entendimento dos escolásticos cujo o
esforço era alcançar a contemplação da verdade; a noção moderna, ao contrário, se desenvolve e
alcança seu ponto de transição no pensamento de Marx com um convite para transformar a realidade — transformar o
mundo.
Vale ressaltar que essa foi a
tentativa de Marx, totalmente inoperante, de superar o subjetivismo moderno,
negando a noção de que a História se move impulsionada por uma dialética que se
dava no campo das ideias, como tinha dito Hegel. Marx trabalha com a ideia de
que o homem é o homo faber, que
descobre sua essência na práxis,
fazendo, trabalhando, e não no interior de sua consciência. Na tradição marxista, qualquer reflexão sobre a realidade
ou não realidade que se isola da práxis
é uma perda de tempo e capricho de metafísicos.
Marx não descarta o componente
dialético que move o mundo, no entanto, essa dialética não acontece no domínio
das ideias como pensava Hegel, mas no mundo objetivo, entre o senhor feudal e
seus servos, entre o patrão e o operário; a única dialética possível porque é
fruto do agir humano. O problema é que Marx não chega nesta conclusão agindo
objetivamente, trabalhando numa linha de produção ou participando de uma
revolução, mas através de um esforço intelectual da própria imaginação;
portanto, Marx tenta superar o subjetivismo operando exatamente no campo da
subjetividade, tenta mudar o mundo através das conclusões de sua imaginação,
antecipando, dessa forma, o que iria ser regra no pensamento pós-moderno.
Desse modo, guiada pela concepção
pós-estruturalista — de que a realidade é considerada apenas como uma
construção social e subjetiva, em perpétuo devir —, nossa época segue na
impossibilidade de compreender o próprio drama em que vivemos.
A premissa básica para essa
incompreensão é uma sinistra deformação da linguagem. A aquisição do domínio da
linguagem é o elemento fundamental para que se consiga ser fiel a nossa
experiência diante do mundo sem se deparar com a ideia posta de que tudo na
vida pode ser mera alucinação. Ser fiel a experiência real evita que se
reproduza na consciência apenas o que foi introjetado pela cultura e pela
sociedade. Na maioria das vezes as pessoas absorvem valores que não
correspondem a sua experiência direta, gerando uma cisão entre o indivíduo e
sua experiência real. Ora, em todo caso, os elementos culturais nos ajudam a
expressar para nós mesmos o que vemos no mundo; o problema é quando se decide
em favor da cultura e não da individualidade. Os elementos culturais devem ser
usados para as finalidades do indivíduo, servindo-o, caso contrário o indivíduo
será assimilado por esses elementos tornando-se apenas um repetidor de frases
de efeito, pensando a realidade sempre fora de sua experiência genuína.
O impacto disso é uma linguagem
deformada geradora de um discurso que dificilmente alcança a compreensão dos
fatos. Discurso é movimento, é transcurso
de uma proposição a outra; é uma unidade formal organizada por premissas e
conclusão. O discurso sempre deve estar ligado por algum nexo, seja ele lógico,
analógico, cronológico, etc., que obviamente suscitará uma modificação no
ouvinte por mais breve que seja — aceitar ou rejeitar um discurso é de alguma
forma passar por uma modificação. Hoje, sob o clima da pós-modernidade,
discurso foi reduzido a definições estranhas como: “dis-curso, desvio de
curso”. Essa definição esquisita faz sentido dentro de uma ocasião
oportunamente chamada de “pós-verdade”, onde a linguagem já não é mais capaz de
expressar sua referência à experiência real.
O discurso, que hoje repousa à
sombra de explicações pós-estruturalistas, e que se arrasta de Marx à Foucault
— e de Foucautl à filósofos de 140 caracteres —, é incapaz de apreender o real,
pois sempre aparece acorrentado a uma escolha ideológica (quando muito são
discursos sobre textos que correspondem apenas a outros textos, descartando a
experiência real). Assim, o subjetivismo moderno fez do relativismo a única
experiência possível, e por isso mesmo é aceito como inquestionável o mantra
que diz que “todo discurso é ideológico
e político”; uma ideia que joga no balaio tanto a oratória parlamentar quanto a
poesia lírica, tanto uma notícia de jornal quanto o trabalho filosófico sobre
metafísica, tanto o conselho moral de um pai para seu filho quanto o relatório
de uma empresa a seus funcionários. Tratar as coisas dessa forma e dizer que
“todo discurso é ideológico”, que “não há realidade sem ideologia”, é não saber
o que é discurso, é não saber o que é realidade e menos ainda ideologia. É o
típico mecanismo que reduz todos os discursos ao mesmo nível, sem uma
hierarquia de valor; eis nivelamento que geme sob a bota do marxismo.
O problema dos marxistas de nosso
tempo é que não leram Marx, que situou com muita precisão a ideologia como uma
falsa consciência; uma ferramenta que deforma a realidade, colaborando para
certa manutenção de relações de dominação. Ideologia é um pensamento total que
tem por ambição explicar tudo de antemão, pois nada tem a aprender porque já
sabe demais. Consequentemente, a realidade será mutilada e sempre ajustada ao
discurso ideológico. Ora, a realidade não é ideológica, não depende da ideologia
e muito menos de nós para ser o que ela é. A realidade, que é permanente, está
fora de nós ao mesmo tempo que nos abrange, e como diz Heidegger, toda nossa orientação é guiada por ela,
pelas coisas: “na irrupção do humano, nossas pesquisas confrontam as coisas”.
Se afastar de uma mente ideológica
não significa abrir mão de nossas próprias perspectivas, e nem mesmo nos impede
de assumir que a política pode ser compreendida de muitas maneiras — o que não
implica aceitar todas as suas formas ou negligenciar nossas convicções em nome
de uma suposta imparcialidade.
Assim, o sentido de ideologia,
reinventado por Lênin e Gramsci, se converte numa concepção neutra que
constitui qualquer ideário de um grupo de indivíduos. Como vimos acima, há uma
tendência na pós-modernidade de mudar o sentido das palavras; se mudam o
sentido das palavras a comunicação se torna impossível. Mesmo que se entre no
plano de realidade do sujeito ideológico, a comunicação ainda se torna
debilitada, pois o apelo à experiência é inútil, porque ele pode usar os mesmos
nomes para designar os objetos da experiência, mas ele estará pensando outra
coisa.
O sujeito ideológico ajusta a
realidade ao seu próprio horizonte de consciência, como um alfaiate, que invés
que ajustar o terno do cliente prefere lhe amputar o braço, adaptando a
realidade às suas crenças. Ao contrário, é a realidade que nos orienta e,
quando ela nos desampara, diz Heidegger: “o Nada nos encurrala, e, na sua
presença, toda enunciação do ‘ser’ — tudo aquilo ao qual aplicamos o termo ‘é’
— se silencia”. A ideia aqui não é negar o relativismo, mas entender que este é
apenas uma fina camada epidérmica da realidade, e não a totalidade do real. É
apenas uma concordância prática, circunstancial, sem a dignidade de um genuíno
ideal moral. E quando procura se adornar com uma ideologia autoglorificadora,
que se justifica sobretudo como teoria "científica", os discursos
mais bizarros se tornam deveras atraentes quando repousam em cabeças como de um
Robespierre, de um Lênin ou de num Hitler.
Na cultura, as consequências são
incalculáveis, pois ao excluir a moral e o direito natural os maiores absurdos
da terra estariam legitimados em nome do relativismo; não haveria nenhuma razão
pela qual se deva supor que um sujeito não possa ser morto por ter uma
tendência homossexual, ou que um marido não possa bater na sua esposa: levando
o relativismo às últimas consequências, qualquer condenação dependeria de
fatores absolutamente contingentes.
Em um mundo onde o certo e o errado
existem de fato, podemos afirmar com muita tranquilidade que os maridos não
podem agredir suas esposas, que uma pessoa não pode ser assassinada por sua
tendência sexual e etc. Não há como afirmar a imoralidade desses dois casos e
rejeitar a moral. Esse é um paradoxo do qual determinadas filosofias pós-modernas
nunca conseguirão escapar, pois elas vivem de ditar regras em cima de preceitos
que elas próprias afirmam não existirem.
A pós-modernidade é nosso clima,
frio, embaraçoso, insólito, disforme; é sob este clima que precisamos
desenvolver uma habilidade que seja capaz de penetrar e discernir as camadas da
realidade, tão ocultada pela neblina pós-moderna. Se enfrentada com
honestidade, esta tensão será saudável, e a medida que se avança no cerco das
ideias a melodia dramática consiste em manter sempre desperta a consciência dos
problemas, que são o drama ideal.
Ao ultrapassar a neblina do
relativismo pós-moderno, poderemos descer a assuntos mais imediatos, tão
imediatos que se conflui com nossa própria vida, como dizia Ortega y Gassete:
“a vida de cada um”. Mais ainda, quando se insiste em mergulhar por debaixo do
que cada um costuma acreditar que seja sua vida, perfurando-a, vamos nos
ingressar em regiões subterrâneas do nosso próprio ser, que permanecem secretas
de tanto nos serem íntimas, por serem nosso ser.
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