Mostrando postagens com marcador Mulheres. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mulheres. Mostrar todas as postagens

A supremacia da igualdade

quinta-feira, 5 de maio de 2016 Postado por Lindiberg Mustang

Jesus foi o único homem que recebeu a pura revelação de Deus e a transmitiu de forma igualmente genuína. Por isso não faz sentido separar o modo como Jesus enxergava o mundo e a realidade, apresentada nos evangelhos, do modo como os apóstolos assimilaram essa mesma realidade ao escreverem suas cartas no decorrer do Novo Testamento. Digo isso, porque, como Paulo Brabo acentua muito bem, “parece que existe uma fratura que separa as duas porções do Novo Testamento — de um lado os quatro evangelhos, do outro todo o resto”; um abismo mais profundo do que aquele que separa o Novo Testamento do Antigo.
O que Paulo disse, escreveu e ensinou foi acolhido pelos cristãos de forma tão apaixonada ao ponto de não ser mais possível intuir a simplicidade do Cristo nos quatro evangelhos. Não acredito que existam disparidades entre o que Paulo escreveu e o que Jesus disse, mas penso que haja dessemelhanças profundas entre boa parte dos cristãos e a unidade do Evangelho, que compõe todo o Novo Testamento.
Se me permitem, uma dessas dessemelhanças é em relação à sexualidade e — num contorno mais estreito — em relação à mulher. A maioria das culturas antigas foram desenvolvidos mecanismos para legitimar a superioridade do macho, e isso é ilustrado explicitamente no judaísmo: no templo, as mulheres não podia se aproximar do Santo dos Santos e a desigualdade nas sinagogas era delimitada da mesma forma: as mulheres tinham que manter uma distância semelhante na hora do ensino. Numa sociedade em que um homem não conversava com mulheres em público ou em que um rabi jamais se deixaria ser tocado por elas, Jesus, além de não dar bola pra isso, teve um atrevimento sob medida para romper com toda essa tradição, resistindo qualquer tipo de tentação de legislar algum tipo de norma para as ralações interpessoais.
A postura de Jesus é delicada e aparentemente o apóstolo Paulo nada tem a dizer sobre isso. E se Paulo nada tem a dizer, que dirá então a igreja dos séculos seguintes, que preferiu cortejar, através de uma afinidade ideológica, bem mais os refinamentos filosóficos paulinos do que a simplicidade de Jesus ao tratar a vida. Paulo parece ter entendido a radicalidade de Jesus de maneira mais acanhada; ele não titubeia em dizer que o homem é o “cabeça” da mulher; instruiu que as esposas devem ser submissa aos maridos e não diz nada contra a escravidão em si. A igreja, mais apaixonada pelos discursos teológicos de Paulo, optou por conservar a mesma estrutura da superioridade do macho. Agostinho (354-430 d.C.) opinava seriamente que o homem é feito à imagem de Deus, mas não a mulher. Tertuliano (160-220 d.C.) determinava que as mulheres reconhecessem ser o “portão do inferno”, “responsáveis pela entrada do pecado no mundo e pela morte do Salvador”.
A mera passagem do tempo não parecia melhorar as coisas. Mil anos depois de Tertuliano, Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.), influenciado pelo caráter aristotélico de enxergar a realidade, concebia a mulher como “um homem malfeito”, não possuindo uma alma racional — uma criatura apenas para “assistir com a procriação”.
Apesar disso, o cristianismo é sem dúvida a primeira religião a favorecer uma visão romântica da mulher, principalmente depois da veneração de Maria — uma reverência superestimada já no quarto século da cristandade. Maria era a personificação da bondade, da afeição e da benevolência: a mãe de Deus. Uma marca que de certo modo seria compartilhada por, abre aspas, todas as mulheres, fecha aspas. Paulo Brabo nos lembra de que a mulher medieval — e posteriormente a mulher moderna —, do dia a dia, era impura e “com frequência vilipendiada, segregada e usada como bode expiatório". Mas a maldade não é privilégio dos homens; e as mulheres podem produzir, e efetivamente produzem, como qualquer ser humano, tanta crueldade quanto. Há inúmeros registros sobre isso, inclusive em histórias bíblicas como de Jezabel, ou da mãe que devora seu próprio filho para não morrer de fome (2 Reis 6.29), também justificava certo ar de repugnância.
A despeito disso tudo, não penso que essa história se resume em algum tipo de conspiração de homens para explorar as mulheres. Penso nisso mais como um arranjo cultural desenvolvido organicamente. Não quero dizer que é eticamente certo agir assim, mas uma cultura não é uma entidade ética. Não é disso que se trata. E claro, o comportamento dos membros de uma sociedade que ilustram suas relações através de jogos sociais de poder deve ser mudado. E por pensar assim, as atitudes de Jesus foi um choque para sua época, e um chamado para que todos recusem e abandonem os mecanismos de controle e manipulação que este mundo produz. Assim, o reino de Deus se prefigura como uma fraternidade de irmãos que renunciam contundentemente qualquer forma de dominação, especialmente quando se trata de mulheres.
O rabi de Nazaré foi o primeiro que elegantemente tratou de minar essa ideologia da supremacia do macho; recusou-se a endossar a característica de um macho dominador começando pelo fato dele não ter sido casado. Uma escolha voluntária no mínimo singular pra época, principalmente pra quem desejava ser um mestre espiritual. Para um judeu, casar era uma indicação básica de masculinidade e portanto de valor. Jesus deixou claro que seu valor não estava fixado na postura de ser um provedor ou reprodutor. Ao contrário, por vezes o seu sustento foi promovido por mulheres.
O que não pode ser dito dos homens daquela época é que Jesus não só se sentia à vontade diante das mulheres — para visita-las, ensiná-las, bater um papo na beira de poço — mas também saiu em defesa delas. Ao tomar partido de uma mulher apanhada em adultério, Jesus prediz não só um reino de igualdade — pois somente a mulher iria ser punida —, mas também um reino onde a misericórdia suplanta todo juízo diante do pecador. O amor sempre fala mais alto que a justiça da Lei. É disso que se trata. Nada permanece o mesmo depois de ser tocado pelo amor.
Diante disso, o que Jesus fez foi pregar a igualdade entre homens e mulheres dois mil anos antes desta questão virar pauta ideológica. O feminismo obscurece o assunto quando acentua e radicaliza a igualdade negligenciando as diferenças (biológicas, psicológicas, simbólicas, social), enquanto a ideologia da superioridade do macho acentua e radicaliza as diferenças na medida em que negligencia a igualdade. O Evangelho, por outro lado, realça que homens e mulheres são iguais em termos de humanidade. É nessa consciência que Jesus anuncia essa boa nova.
Para os escritores do Novo Testamento essa boa nova soou como uma mensagem essencialmente universal. Paulo, da qual a igreja salientou somente suas recomendações truncadas, sobre as mulheres permanecerem caladas nas assembleias e submissas como afirma a própria Lei, escandaliza os ouvintes de sua época ao afirmar que “em Jesus não há judeu nem grego, nem escravo nem livre” — e pasmem — “nem homem nem mulher” (Gálatas 3.28). A supremacia do macho se desfalece diante da destruição do muro que separa os homens, pois todos formam uma unidade em Cristo. Paulo também coloca a mulher em pé de igualdade marital dizendo que “a mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o marido; e o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim a mulher”. A visão de casamento tradicional também foi minada por Jesus quando resgatou o arquétipo do Gênesis do “serão um só corpo”, onde o amor seria o laço dessa união. Um laço tão bem amarrado que Paulo não hesita em dizer que os maridos devem estar prontos para morrer por suas esposas.
Essa igualdade está explícita simbolicamente na descida do próprio Deus ao nível do ser humano. Deus se encarna de modo que todos puderam olhá-lo nos olhos, face a face. Essa é a manifestação mais formidável, reforçada em todo o Novo Testamento, de que a horizontalidade do amor de Deus é um terremoto que faz desabar todos os mecanismos de controle e manipulação que sustenta a ordem desse mundo. Esta é a revolução do reino: encarar as desigualdades fincadas na ganância, na superioridade moral, na hierarquia, na expropriação do mais fraco, enfim, encarar tudo isso na consciência de que a graça é uma força mais poderosa do que o ódio, que rompe todas as relações disformes entre os homens.
©2016 Lindiberg Mustang

O que é ser verdadeiramente um discípulo e igreja

sábado, 15 de outubro de 2011 Postado por Lindiberg Mustang


Ama-Lo
Amar o próximo
Libertar
Servir
Enviar
Esta é nossa missão
Este é o grande chamado
Isto é discipulado
Isto é Igreja

Deus, mulheres e outras coisas

quinta-feira, 11 de agosto de 2011 Postado por Lindiberg Mustang


Com o modo patriarcal de serem regidas muitas das sociedades antigas, as mulheres raramente tiveram espaço e voz — ao contrário, eram desvalorizadas ao extremo. Uma das raríssimas exceções de exemplos de mulheres no poder é a famosa Cleópatra (69 – 30 aC.): umas das mulheres mais conhecida e proeminentes da história antiga, Cleópatra era grega e conquistou o topo do poder como rainha do Egito. Apesar de ser uma grande negociante, estrategista militar, nunca chegou a ser detentora única do poder. Sempre co-governou com um homem ao seu lado.
Na antiguidade era muito comum as mulheres serem vistas de forma negativa, sempre inferior ao homem e com a postura não muito maior que a de um escravo — isso pode ser confirmado tanto na literatura grega quanto na judaica. Na sociedade grega, onde houve lampejos de uma democracia, as mulheres assim como os escravos não tinham autoridade, sendo totalmente passivas nas questões deliberativas. Nas relações sexuais, muitas delas eram trocadas por homens e submetidas a um simples objeto sexual.
Na mitologia, havia os destaques da bravura e sagacidade de deuses como Poseidon, Apolo e Zeus; mas o panteão também destacava fortemente a presença de mulheres através de figuras como Atena, Afrodite e Hera. As deusas eram contempladas e cultuadas, mas ainda assim era comum, na Grécia, os homens agradecer aos deuses pelo fato de ter nascido grego, livre e homem.
A despeito de muitas mulheres se sobressaírem, tanto na tradição judaica, como na cristã, muitas delas foram reduzidas a um móvel da casa. Historias como a de Eva, Dalila e Batiseba, eram vistas sempre como um tipo de desgraça natural para o homem. Era comum sacerdotes judeus repetirem: “Da mulher provém o início do pecado, e através dela todos nós morremos”. Isso para não parafrasear Adão: “A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi”.
Salomão, que foi um cara extremamente sábio e romântico, coloca a mulher num patamar de beleza deslumbrante — dedicando a elas um livro da Bíblia e vários provérbios —, como também a coloca em níveis baixíssimo (Provérbios 10:7-19, Ec7:26). Platão e Kant, por exemplo, tem em comum o fato de que acreditavam que as mulheres não foram feitas para pensar, sendo este um privilégio dos homens, que se encontravam revertidos naturalmente com a linguagem filosófica e o conhecimento. Diziam que uma mulher instruída era um ser lutando contra sua própria natureza.
Contudo, é na cultura judaica que a mulher exerce papéis monumentais que desencadeiam episódios cruciais para a história dos judeus; episódios esses que não foram suficientes para mudar essa concepção judaica em relação às mulheres — isso porque a Lei já tinha uma legislação prontinha sobre o papel da mulher. Jesus Cristo viria para desconstruir essa ideia e abrir mão de qualquer postura regulatória em favor da mulheres.
É evidente que o mestre de Nazaré foi o único líder da antiguidade a tratar a mulher de forma puramente digna, endossando uma conduta inequivocamente abrangente e nada normatizadora. Numa ótica patriarcal, a mulher era excluída de todo exercício religioso e governamental. Boa parte das correntes rabínicas considerava indigno ensinar a Lei às mulheres, tratando-as num contexto de total submissão ao homem. Como sempre, Jesus andou subversivamente na contramão dessa conjunção cultural. O Filho do Homem era tocado por elas, tinham-nas como discípulas instruindo-as publicamente; era flagrado conversando com elas, sendo tocado por elas e até mesmo sendo presenteado por elas, causando escândalo aos seus discípulos e opositores.
Durante a história, as atitudes de Jesus nem sempre foi bem compreendido; talvez pelo jeito truncado de Paulo escrever, condicionado culturalmente pelo seu tempo, e expor algumas normas orientando que as mulheres ficassem caladas no culto ou que se submetessem aos seus maridos. Certamente Paulo foi o apóstolo que mais entendeu a mensagem de Jesus, entretanto, por não ser um cara tão esperto quanto Jesus — mas cheio das boas intenções — acabou deixando alguns regulamentos entes de morrer. Não deu outra. A postura de Paulo foi mais desejada, aceita e aplicada durante os anos que se passaram, gerando desdobramentos na vida real aonde o controle iria cada vez mais cercar a vida das mulheres.
Apesar disso, é preciso reconhecer que foi a partir do cristianismo que a cultura ocidental foi modelada e a consciência livre da mulher foi dignificada. Jesus exerce seu papel de libertador em relação à mulher e mostra que a liberdade feminina repousa na descoberta da ordem interna de sua consciência, tal como a do homem. É justamente nesse ponto crucial que nos igualamos em humanidade. É em Jesus — com suas curas, ressureições, com o seu modo de repartir o pão com aqueles que não tinham, com o jeito que seus pés eram lavados com lágrimas valiosíssimas — que o corpo passa por uma transição de uma mera prisão com funções biológicas — como vista pelos gregos — para um exemplar sagrado e valioso do Espírito.
É em sociedades primitivas, que não tiveram o toque da graça do Evangelho, que encontramos uma hierarquia muitas vezes bizarra das funções entre homens e mulheres. Comportamento explícito na condição social de mulheres nas tribos nômades da África ou Guaranis. É exatamente em países e culturas que se fecharam ou não tiveram acesso à elegância do pensamento cristão que observamos o condicionamento e a covardia implexa nas relações entre homens e mulheres.
Por isso, há uma beleza irretocável no fato de Deus escolher pousar numa mulher para que essa concedesse o seu filho; isso porque ele poderia escolher descer de várias formas, no entanto, é na mulher que o Espírito resolve pousar e se desenvolver. Um pensamento oriental discerniu com esmero esse conceito e reforça através de certo aforismo hindu:
O Espirito dorme na pedra, sonha numa flor, acorda no animal, sabe que está acordado no homem e sente que está acordado na mulher.
Em Maria o Espírito se desenvolveu em plenitude, pois para ela a fé não era objeto de dissecação, mas sim uma força vital de sobrevivência que a induz numa entrega total. E essa entrega acontece mesmo num solo cheio de dúvidas e questionamentos.
Jesus não se colocou diante das mulheres com uma postura reguladora e autoritária que é o que se esperava na época, e em troca, foi sempre da parte delas que Jesus recebeu os gestos mais afetivos e ousados: as mulheres nunca traíram Jesus como fizeram os apóstolos, inclusive o principal deles, Pedro. Elas foram fieis até o fim, ao pé da cruz e na hora do sepultamento. Não é de se estranhar que justamente o sexo feminino, tão desprezado e oprimido pela supremacia do macho, tenha sido escolhido por Deus para testemunhar o maior evento da história da salvação da humanidade: a ressurreição de Cristo!
Sei que Deus ainda é pintado como uma figura paterna e muitas vezes a igreja representa isso de forma muito severa, no entanto, creio que quando chegar à eternidade vou me deparar nos braços de um Deus-Mãe, que me abraça e me beija, com amor e carinho.
E essa ideia não é minha, não é da igreja e muito menos de Willian P. Young (autor de A Cabana), mas sim de Jesus Cristo. Ora, Jesus apresenta Deus como um pai, que tem as características de uma mãe: como uma galinha que acolhe seus pintinhos (Mt 23:37. Sl 63:7, 91:4); como o pai do filho pródigo, que aguarda o seu filho, e sai pra recebê-lo cheio de misericórdia, ou seja, cheio de entranhas — coisas que as mulheres têm.
Jesus apresenta Deus como mãe ao contar a parábola de uma mulher sai a procurar seu bem mais precioso, e quando encontra se alegra com suas amigas — somos esse bem mais precioso. Enfim, Deus transfigura-se numa beleza maternal, poética e sensitiva que transcende essa concepção tradicional e severa pintada pela religião e que a igreja infelizmente não consegue se desgarrar. Deus não é homem e nem mulher, mas quer ser amando como um pai; e é notável como também ama como uma mãe.

©2011 Lindiberg de Oliveira

Um conto sem nome

segunda-feira, 21 de março de 2011 Postado por Lindiberg Mustang

Uma das piores agonias psicológicas que existe é quando uma pessoa infame vira uma assombração na sua vida. Talvez seja pela falta de perdão, uma pretensa reconciliação inacabada, ou quem sabe uma daquelas teorias freudiana possa explicar de forma mais perspicaz. Mas a questão é; ela virou meu inimigo, meu algoz. E a ausência de adjetivo feminino é totalmente proposital.
Quando seu algoz entra na sua cabeça a ruína é inevitável. A princípio o que vai ser martirizado é a sua alma. Você não consegue ir pra cama sem antes dar de cara com aquele que um dia mutilou seu coração. Ao acordar, ele também vai estar lá, pronto pra te dar um bom dia, com aquela cara de boazinha, como se toda projeção de imagens implodisse dentro de mim. Nesses baques a sua alma vai sendo sutilmente truncada, criando dentro da sua mente um forte laço com aquele que você desejaria expulsar pra fora do planeta. O malfeitor que desejo engaiolá-lo e jogar no mar do esquecimento, na verdade, é enjaulado dentro da minha cabeça. A insanidade começa a traspassar o corpo.
Lá estava eu mais uma vez, paralisado em minhas lucubrações não conseguindo digitar uma só letra. Arquitetava nosso encontro. Minha imaginação extrapolava quando bolava algum tipo de agressão verbal ou até mesmo física. Queria machucar, tanto a alma quanto o corpo. Nessas alturas já estava ciente que o meu carrasco estava sendo eu mesmo — é o desejo por vingança; é o desejo.
Precisava vê-la, olhar nos seus olhos. Tinha que enfrentar tudo isso e me deparar com essa realidade fugaz e sem sentido. Foi então que percebi que estava sendo covarde e que alguma atitude tinha que ser vestida de ações. A guerra teria que começar, e eu só poderia vencer levantando um tipo de bandeira, aquela que só os fortes levantam no furor de uma batalha: o perdão é o estandarte dos fortes. Vingança, perdão; o desejo nem sempre é traduzível.
Naquela tarde o sol estava bem visível. Decidi me recompor, canalizando assim meus atos pra outro rumo. Eu tinha que vê-la, e vomitar até a última vírgula do que eu tinha pra dizer.
O tênis ainda estava úmido, mas não me importei. Vesti aquela velha camisa branca, pois caía bem no meu corpo, e não me impliquei muito com a calça, pois já estava usando ela a semana inteira mesmo. Qualquer estratégia era dispensável, pois eu tinha as palavras e o olhar. Era tudo que eu precisava.
Cheguei ao local onde ela trabalhava disfarçando terminantemente minha ansiedade e nervosismo, deixando subentendido no meu olhar uma ousadia e confiança que por dentro, minha alma negava contraditoriamente. Logo que entrei no ambiente — o qual nunca me chamou a atenção — foi perceptível como a auxiliar de escritório que ali trabalhava a mais de dez anos ficou admirada. Ela me conhecia e tinha consciência de que ali era o único lugar que jamais me veria.
— Boa tarde — cumprimentei de enceto.
— Boa tarde — respondeu ela com um sorriso surpreso, tentando disfarçar pegando alguns papéis na mesa, o qual eu julgava ser algum tipo de documento. — Você andou sumido hein rapaz!
— Pois é — respondi com um leve sorriso no canto da boca, colocando o celular no bolso esquerdo da calça, indo em direção à porta que dava acesso a sala dela.
Ao entrar senti minha mão direita tremula e a sensação que tive era que agulhas saiam do meu estomago. Discretamente ajustei os óculos para que ficasse numa posição mais confortável no meu rosto, enquanto ela estava sentada, debruçada em sua mesa, certamente lendo algo insignificante na internet. Sua expressão ficou visivelmente sobressaltada ao ver que eu entrava pela porta. Os olhares constrangidamente se fixaram fazendo-me perceber a dilatação de suas pupilas. Então inferi minhas primeiras palavras:
— Boa atarde!
— Oi — respondeu ela, totalmente confusa em relação a minha presença naquele lugar, o qual ela julgava eu ser a última pessoa a pisar os pés ali. — Que surpresa!
— Preciso conversar com você. Está muito ocupada? — apoiei minha mão no encosto da cadeira empurrando-a para o lado, como se não quisesse sentar.
— Um pouco, mas não é algo que impede da gente conversar — disse ela com um olhar circunspecto e duvidoso — quer que seja aqui mesmo?
— Melhor irmos para outra sala, ficaremos mais à vontade.
— Também acho — ela se levantou vagarosamente indo em direção à porta que dava acesso ao galpão — vem, aqui tem algumas cadeiras.
O local era escuro e abafado, mas era o lugar perfeito. Sentamos, e tudo que tinha ensaiado pra falar havia sumido da minha mente.
— Certo — comecei meu discurso tentando não desviar o olhar pra nenhum outro canto, — não sei se vai entender, mas eu tinha que vir aqui. Não consigo parar de pensar em você — o olhar dela se tornou penetrante depois dessa frase. — Talvez seja por falta de perdão, não sei, mas a realidade é que sua imagem se imortalizou dentro de mim, e por mais que eu tente não consigo te esquecer. Fiz tudo ao meu alcance pra apagar você da minha vida, uma investida que sempre fracassei. Vir aqui te ver foi a ultima opção que me restou.
Seus olhos começaram a ficar vermelhos, levantando assim as sobrancelhas, sinceramente embaraçada, porque não podia imaginar a conversa tomando aquela direção.
— Os pensamentos vêm, não consigo pará-los — continuei depois de uma pausa, — te imagino praticamente em todas as situações do meu dia. Saber que você está perto me deixa apreensivo, inquieto sabe. Se você mudasse e, de preferência para outro planeta, acho que a situação aliviaria. Tinha você como minha conselheira, e se estou aqui é porque não tenho ninguém com que eu posso conversar. Sua opinião vale muito pra mim, e você sabe disso, e é por isso que as coisas muitas vezes só tem sentido se você estiver vendo, advertindo, observando.
Lágrimas começaram a declinar-se no seu rosto, mas sua face permanecia serena. Percebi que ela queria ouvir mais, quem sabe para poder assimilar bem tudo aquilo.
— Te imagino passando por mim na rua, dentro dos carros, tropeçando em você no supermercado, na lanchonete. Penso em você depois de ter vestido algo novo ou ter feito a barba, e parece que todos os elogios e críticas não tem sentido algum se a sua opinião não estiver incluída. E isso é algo obcessivamente sem sentido, ora, você mutilou minha alma em todas as esferas, e as lesões ainda estão abertas. — Ela abaixou a cabeça colocando o rosto sobre as mãos e os cotovelos sobre as pernas. Talvez para esconder uma expressão mais aguda do seu choro. Até então não tinha saído uma palavra da sua boca.
Olhei pra cima pra ter uma respiração mais confortável, sem saber instintivamente como desfechar essa conversa. Então resolvi falar aquela frase que fui decretado a inferir.
— Olha — reiniciei o monólogo — vim aqui te dizer algo, mesmo que não esteja tendo esse sentimento em sua totalidade, vim aqui pelo menos verbalizar isso. Talvez me traga algum alívio.
— Espera — disse ela quebrando totalmente aquele solilóquio existencial — quero dizer algo.
Ela levantou o rosto que a essas alturas já estava encharcado, movendo o seu braço compassadamente colocando sua mão em minha perna. Fixou seus olhos inteiramente nos meus, o que me fez imaginar que a conversa poderia tomar outra rumo.
Então o seu rosto veio em minha direção bem devagar. E disse bem baixinho, aquilo que eu sempre soube.

©2011 Lindiberg de Oliveira