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O que é arte?

sexta-feira, 7 de outubro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
O que faz de algo uma obra prima? O que é arte? Bem, até o século 19 as respostas poderiam ser bem convencionais, todas aprovadas por um fator essencial da experiência humana: o êxtase, o devaneio, o arrebatamento íntimo, o sentimento que elevava o ser ao Eterno; era a iniciativa pela qual o indivíduo, amparado pelas mãos dos deuses, se anunciava ao mundo.
Foi no século passado que toda proclamação de valor estético caiu no vazio do relativismo. Depois de expor um urinol como obra de arte, intitulado como A Fonte, Marcel Duchamp espalhou um resíduo de ceticismo e muita gente começou a se perguntar: “O que de fato é arte?”. Desde então as respostas para essa pergunta começou a transitar entre o sublime e o vulgar, entre o admirável e o trivial. Em um mundo em que a afluência artística que tinha em si o brilho da beleza, a arte chega ao século 20 ofuscada pela piada de Duchamp.
Particularmente penso em arte como uma unidade composta por forma e conteúdo. Explico: como pensava Aristóteles, forma não se reduz a uma mera figura externa das coisas, mas é o princípio da sua própria funcionalidade. Forma seria então a estética de uma obra, são os traços de um desenho ou o contorno de uma pintura; é a estrutura da composição de uma música ou todo arcabouço de um filme; é a métrica de uma poesia ou o busto de uma escultura. O conteúdo, por outro lado, é o que dá o aspecto dialogal de cada obra; são os meios estéticos de expressão que se organiza em função de seu efeito artístico. O conteúdo é o que o artista quer passar, é a sua mensagem; é todo o aspecto dramático da obra em que o artista arrisca a vida para dar existência a sua criação. 

Para Nietzsche, de tudo quanto se escreve só vale a pena se deter naquilo que é escrito com o próprio sangue. Eu diria que na arte não é diferente; o sangue é símbolo dionisíaco, significa vontade; símbolo também da vida. Escrever com essa vida significa a própria elevação do espírito, que possibilita estar à frente de todos, de antecipar situações e tendências. Isto acontece quando o artista transforma a situação em que vive na situação de sua própria época, tornando a obra não somente um comentário de seu tempo, mas também um comentário sobre todas as épocas, universalizando o que há de comum na história humana.
Ora, nem sempre é possível contemplar de imediato a forma e o conteúdo em perfeita harmonia numa obra. Às vezes o conteúdo se apresenta fixada numa forma embaraçosa, onde as imperfeições estéticas são as condições humanas da obra falar — prefigurando a própria beleza da obra.
Dessa forma, o que impressiona nas músicas de Bob Dylan não são seus simples acordes acompanhado de uma fonografia indefinida; o que nos surpreende nos filmes de Stanley Kubrick não é seu perfeccionismo já há muito ultrapassado pela tecnologia atual; o que assombra nos romances de Dostoievski não é o niilismo que parece engolir todo mundo. Não. Nada disso fica em pé diante da profunda experiência que emana do conteúdo dos trabalhos desses gênios, atulhado de angústia, solidão, orgulho, loucura, morte.
É assim que a arte cumpre seu papel funcional no mundo, inspirando, consolando, elevando o espírito ou comunicando o desprezo, a decadência e a humilhação. Tudo isso através da caneta, dos pinceis, da argila, da tinta, das imagens, dos sons, dos acordes, do movimento, da dança, etc.
Entretanto, só se pode perceber a função da arte quando se entende o conflito entre forma e conteúdo; e isso só é possível na medida em que o conteúdo sobrepõe à forma. É nesse momento que a redenção brada mais alto que as imperfeições estéticas, revelando que a supremacia do Bem prevalece sobre a desordem que arrasta para baixo toda dignidade humana. Assim, a arte oferece sempre uma arriscada travessia que vai das determinações mais baixas e aponta para uma dimensão sublime da realidade. Essa travessia não é possível para pessoas que mal sabem suas próprias opiniões sobre a natureza humana, ou seu lugar dentro da História; não é possível nem mesmo para uma elite que é incapaz de encontrar o sublime na fragilidade do grotesco.
Foi Paulo Brabo que me fez entender que o sublime estampado no grotesco também nos lembra de que somos gente, com nossas falhas e deformidades, revelando a crueza de nossas funções biológicas como a fome, a cede, o suor, o arroto, o peido — elementos estes que para a superficialidade do orgulho humano apenas nos distrai da ideia de eternidade. Ledo engano.
Não se trata de elevar essas necessidades primárias do homem, mas de entender que o sublime também pode ser encontrado no grotesco justamente porque este evoca o ciclo da vida e morte das coisas. E isso o homem urbano sofisticado não acolhe porque trata de uma realidade que arranca o sujeito da ideia de transcendência jogando-o na esfera do temporal, do relativo, do constrangedor, do indecoroso, do hic et nunc. Aqui o sublime se apresenta quando a beleza faz dessas coisas uma abertura para se vislumbrar algo mais elevado, que vai além do temporal. É a travessia que seguimos juntos com o artista da terra ao céu, do inferno ao paraíso que começa justamente na nossa decadência fisiológica.
Como Paulo Brabo deixa claro, essa é a ideia embutida na literatura de cordel: “O cordel é anguloso, despretensioso, barato, escatológico, relaxado, inferior, almeja o popular – sua mensagem é: posso estar na mão de todos”. Seu conteúdo é a de explicitar uma genuína participação que vai além dos anseios padronizados pela cultura. Ora, a beleza também é graça divina acessível a todos os homens e pensar o contrário é negligenciar sua natureza subversiva.
Diferente de cada criação da Apple, seja um dispositivo ou um anúncio, que fala de um ideal sofisticado, elegante, superior, distinto e sem arestas — com sua mensagem: posso estar na mão de poucos —, o cordel, grotesco, carregado de uma estética defeituosa, replicando tragédia, outrora comédia, representa igualmente a necessidade humana de consolo e harmonia; aquela ânsia da alma pela ordem que se alimenta precisamente do valor último que essas obras indicam. Nesse caso, o cordel indica, ou nas palavras de Paulo Brabo: “ilustra um modo subversivo de ler o mundo, um modo que fala de espaços abertos, temporários e sociais — festas populares, feiras e circos mais do que casas e shoppings”. Ou seja, exala um conteúdo que evidencia esse valor último que evoca o sentimento de participação numa comunidade.
É singular o fato da beleza repousar justamente naquilo que se universaliza no homem. Não por acaso a graça, “que se manifestou a todos os homens” (Tt 2.11), é atrelado ao conceito de beleza.
Quanto a verdadeira obra de arte, ela não só é uma expressão da vida moral, mas também o resultado de uma luta interior em que o objeto artístico se torna algo muito além da intenção do artista. É aquela situação em que o artista produz algo maior que a si mesmo, transcendendo suas sensações básicas e imediatas — uma missão que até os anônimos cordeis também cumprem. Afinal de contas, a expressão artística mais elevada não é aquela onde a perfeição estética fala mais alto, e sim aquela em que o Bem fala mais alto. E quando o Bem fala mais alto o horror desaparece sob o luz da beleza.
©2016 Lindiberg Mustang

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A relação entre palavra e imagem

terça-feira, 6 de setembro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang

Há milênios a literatura se arrisca a fazer uma releitura exemplar da realidade humana. Os romancistas com suas obras de ficção conseguiram expressar, até mais que os filósofos, um critério do real que ultrapassaram o seu tempo. Aliás, não só o seu tempo, mas o tempo. Apesar de cada obra de arte ter sua data de nascimento, ela se torna atemporal ao nos fazer apreender a eternidade naquele lapso de segundos em que nossa alma se abre para verdades até então ocultas.
Essa é a experiência quando se fita os olhos com profundidade em obras como de Homero, Dante, Shakespeare, Dostoievski, Kafka, etc. São histórias com aquela ousadia de uma narrativa sofisticada, que também nos ajuda a criar nossas próprias narrativas, clareando diante de nós nossos próprios dramas.
O cinema, sobreposto à literatura, também nos orienta diante de nuances da realidade para uma compreensão melhor da vida e da natureza humana. É isso que aponta filmes como 2001-Uma odisseia no espaço (1968), O poderoso chefão (1972), Laranja mecânica (1971), Blade Runner – O caçador de androides (1982), Clube da luta (1999), A vila (2004), Na natureza selvagem (2007), Watchmen (2009), O homem duplicado (2014), Mad Max – Estrada da fúria (2015), O regresso (2016). Contudo, como pontua Martim Vasques da Cunha, existe uma hierarquia sobre o assunto: “uma coisa é literatura; a outra são produtos derivados como o cinema e as séries de TV. A primeira é uma experiência que estimula a interioridade; a segunda atiça, em sua maioria, os sentidos da visão e da audição, mas também permite um diálogo frutífero entre a imagem e a palavra escrita”.
Quando cultivamos esse intercâmbio entre a palavra e imagem, podemos contemplar no cinema uma espécie de espelho da modernidade que revela o que há de mais belo — assim como o que há de mais traumático — na humanidade; A lista de Schindler, de 1993, por exemplo, retrata estes dois aspectos ao exibir a luta interior de um homem que se nega a fazer parte, mesmo de forma passiva, de um dos maiores genocídios da história. Schindler é o homem que discerniu a realidade do bem e do mal; o homem que não se permitiu ser massa; o homem que preservou as determinações de sua consciência individual mesmo pondo em risco sua própria vida.
É desse modo que o mundo cinematográfico se constitui como uma dimensão profunda da arte, captando os movimentos invisíveis do espirito. Apesar de a imagem ser atraente por sua fácil assimilação, elas ultrapassam a concepção vulgar de meras sequências de imagens para fins de entretenimento.
Cineastas como Stanley Kubrick, Martim Scosese, Woody Allen, os irmãos Coen, Quentin Tarantino, Francis Copola, Clint Eastwood, etc., são gênios do suspense, do mistério, da dissimulação, que gera no espectador experiências únicas através de visuais estonteantes e personagens caricatos moldados por histórias que às vezes dão um nó no cérebro. Apresentam-nos dramas de personagens que poderiam acontecer com qualquer um de nós.
Na literatura, obviamente, o leitor é convidado a fazer um esforço de imaginação para contemplar cada detalhe do que se lê. É necessário uma preparação da memória, da fantasia e da expressão verbal correspondente para ser capaz de sondar o mundo de experiências que está por baixo de cada trama, de cada relação e de cada evento. Por outro lado, diante do universo audiovisual, boa parte desse esforço é dispensável, pois salta aos olhos e ouvidos um conjunto abundante de experiência deixando para o sujeito apenas o zelo de criar uma relação lógica dos fatos ocorridos.
Diante de uma época onde o espetáculo é consumido 24 horas por dia, orientado pela publicidade, pela mídia, pelo marketing, a sedução da imagem fala mais alto que a sutileza das letras. Preferimos o encantamento dos simulacros a ter de encarar o teatro perturbador de Shakespeare. Temos de fazer um retorno aos clássicos da literatura mundial, um verdadeiro diálogo com os mortos, e experimentar todas as mortes narradas tanto por poetas, escritores, roteiristas e quem mais queira entrar neste ofício. Assim, poderá haver um diálogo vibrante entre imagem e a palavra. Um diálogo que cria em nós uma abertura para uma viagem da alma. Uma viagem com todas as volubilidades de qualquer viagem; às vezes negra e gelada, às vezes bela como um dia de sol.
©2016 Lindiberg Mustang
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