Funk, a cultura do horror

terça-feira, 19 de janeiro de 2016 Postado por Lindiberg de Oliveira
Ao ler alguns textos em defesa do funk carioca, percebo que as conclusões sempre se desembocam em duas premissas: I) funk é cultura igual todas as outras; II) criticar o funk como expressão musical de muito mau gosto e chulo, é nada mais do que racismo.
Leitores, leitoras e indecisos, não há problema em identificar o funk como uma manifestação cultural. Segundo o primatologista holandês Frans de Waal, até os símios são reconhecidos por suas expressões culturais — que dirá um funkeiro. Ou seja, o problema é identificá-lo como uma expressão cultural no mesmo plano de todas as outras. Para os vampiros do politicamente correto, Chico Buarque é um gênio da música, no entanto, ele não é melhor que Mc Carol (WHAT?), pois “sua genialidade depende de qual é o grupo social/cultural que o avalia”. Dessa forma, é impossível dizer quem é melhor culturalmente.
Ora, no campo do entretenimento, o funk se evidencia como qualquer outro produto musical a ser consumido. Nesta dimensão, Chico Buarque não é diferente nem mesmo do mofado fenômeno Mr. Catra, pois os dois produzem algo ao gosto do freguês. A dificuldade de compreensão sobre este assunto reside na atitude de querer elevar o funk, igualando-o à bossa nova, por exemplo, num sentido de valor. Para os defensores do funk, a ideia de “qualidade cultural nada mais é que uma utopia vinculada às subjetividades dos agentes avaliadores”. Essa concepção, levada às últimas consequências, cai como uma manga podre no chão de um relativismo completamente irrefletido, chegando as raias da indecência de promover o funk a algo sumamente “belo” — é por isso que só quem não é do ramo ainda leva as ciências humanas 100% a sério.
A beleza não pode ser concebida como algo relativo. Não é como uma laranja que, entrando em contato com o paladar, se revela azeda para uma pessoa e suavemente doce para outra. A beleza é uma intensa fricção com a realidade e aloja um valor em si mesmo, um valor tão importante quanto a verdade ou o amor; transcende nossas aspirações subjetivas, se evidenciando também numa necessidade universal do ser humano. Ou seja, o belo é belo independente de nossa compreensão sobre este fenômeno; assim, quando alguém ler Shakespeare e não gosta, o problema nunca está em Shakespeare, pois ali se expressa uma realidade universal que toca no cerne da alma humana, gerando uma singular disposição para coisas mais elevadas. Isso só pode ser percebido através de um exercício contemplativo, porque vai além de uma orientação de entretenimento.
Talvez Shakespeare não tenha sido um homem melhor — algo que duvido muito — que Mr. Catra, pois ambos estão debaixo da mesma condição humana. Porém, Shakespeare produziu algo maior que si mesmo, assim como Tom Jobim; foram além da simples criatividade, conseguindo mostrar o real sob a luz do ideal. Essa é a característica de um verdadeiro artista: realizar algo que transcende suas próprias paixões; fazer de seus tormentos existenciais, limitações e deficiências a mais bela expressão do Eterno. Certamente, é neste ponto que reside o que poderia ser chamado de “qualidade cultural”.
Na medida em que a democracia gerou o prenúncio desagradável de que é ameaçador julgar o gosto de outra pessoa, este assunto começa a ser deveras aborrecedor. No entanto, o relativismo cultural, de achar que o funk tem em si o mesmo valor artístico de uma música clássica, ignora qualquer critério das tradições artísticas de nossa cultura. O funk aliena-se como um fenômeno de sua própria época ao rejeitar o retorno às raízes mais profundas da tradição ocidental, sendo incapaz de ter qualquer diálogo com grandes artistas de outras épocas.
Na filosofia, autores como Kierkegaard, Nietzsche e Marx fazem uma contestação à tradição, porém, apesar dessa ruptura, eles ainda assim se manteram integrados na mesma tradição; endossaram no horizonte de suas formulações uma aspiração de totalidade. O diálogo com a tradição é justamente o fundamento de um imperativo moral; é entender que os antigos tendem a ter mais consciência da fragilidade das normas do que as sociedades “sofisticadas”, que resolveram acreditar em “novas superstições” destituídas de valores e ideias. Penso que muita coisa na tradição deve ser desconstruido mesmo, no entanto, o que não devemos perder de vista é que há na tradição pontos universais que nos faz identificar algo além desde mundo.
Assim, o funk se apresenta como cultura somente numa dimensão bem particular: como um instrumento de mobilidade social, onde cristaliza em si uma desvalorização dos valores, que termina em levar as massas a consumir cultura na forma de diversão. Não encontramos beleza nisso — ou seja, aquela pulsão da realidade que converge o horror, o caos e a dor em uma lúcida expressão espiritual. Como afirma o filósofo inglês Roger Scruton: “o acontecimento mais banal pode se transformar em algo belo, por um artista que pode ver o coração das coisas”.
A beleza faz das coisas vis uma entonação da nobreza; enquanto o funk carioca percorre o caminho oposto, fazendo o que é belo (a mulher, a dança, sensualidade, amizade, o amor, etc.) se transformar num culto ao horror, com todas as suas consequências morais. O efeito disso surge nas aspirações dos indivíduos, solapada pela cultura de massas e padronizada pelos desejos da multidão — desejos enobrecido de validade como expressão dos “anseios de nossa época”.
Esses anseios, alinhados à cultura de massas, manifestam-se pela tríade sexo-dinheiro-fama, que exprime perfeitamente, quase em sua totalidade, os principais hits do funk. Disso consiste uma completa inversão de valores: as paixões mais baixas e vulgares são exaltados como o padrão a ser desejado, condicionando as pessoas a um energético desequilíbrio interior. Tudo isso acaba por anular todo o senso de significado espiritual da realidade e, desse modo, o funk cumpre seu papel: associando a ideia de ser jovem com a de ser um imbecil.
Nietzsche dizia que a beleza fala em voz baixa, penetrando somente nas almas mais despertas. Ou seja, o discernimento para a beleza ou o desejo de intuir o belo em sua essência não é inato no homem. Não é uma capacidade que nasce pronta, mas sim uma tendência natural que precisa ser desenvolvida na alma humana, assim como a capacidade de caminhar por si próprio. 

Diferente de uma mera introjeção de papeis sociais, esse talento se mostra à luz de uma capacidade pré-existente. É assim também com as experiências religiosas. A fé é apreendida sempre através de um processo progressivo, que precisa ser entendido e desenvolvido para aquilo que é eterno. O contato com a beleza percorre o mesmo caminho, pois no final das contas nossa experiência religiosa é também uma experiência estética — não por acaso há momentos em que somos arrastados desse mundo ordinário de nossas paixões para uma esfera especialmente contemplativa. Momentos estes que nos faz ver que a vida vale a pena.
Em relação à segunda objeção, de que quem critica o funk carioca é racista, por ser uma cultura de gente pobre e negra, não chega a ser um argumento. No máximo um desabafo retórico. Racismo é uma agressão moral e só uma pessoa pode ser agredida moralmente. As discussões sobre o funk gira em torno de um estilo musical; a decadência de um estilo musical que almeja ser elevado como arte. Um estilo musical da qual boa parte de seus representantes são… brancos. Dizer que quem censura o funk é racista soa tão coerente quanto dizer que quem critica a física de Einstein é nazista. As duas conclusões são pateticamente tolas, condicionados por uma reflexão ideológica sem nenhum compromisso com a verdade. Ah, a verdade! Quem se importa com ela dentro desse caldo pós-moderno que virou nossa sociedade?
Em suma, no mundo onde todos os conceitos se derretem, o funk é a plena expressão da pós-modernidade, representada em toda sua aleatoriedade e desordem. Nesse mundo as relações são medidas apenas pelo utilitarismo, tornando a beleza uma mera mercadoria — e de muito mau gosto, certamente. O relativismo é erguido como a bandeira filosófica que satisfaz o gosto de todo mundo. Sacia o desejo intelectual de toda alma tímida e covarde que se recusa a dar um mergulho sincero no mar do conhecimento. São incapazes de suportar a angústia de ter que encontrar uma unidade — a verdadeira substância das coisas — em um mundo onde a maioria se importa apenas com suas próprias paixões. Diante disso, estou convencido de que a beleza — distraído leitor — ilustra nada mais do que uma forma subversiva de ler o mundo, dando sentido a ele.

©2016 Lindiberg de Oliveira