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O dinheiro e sua não-neutralidade

quinta-feira, 30 de junho de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
Muitos pensam que a piedade é fonte de lucro. De fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos a esse mundo e dele nada levaremos; por isso, tendo o que comer e com que nos vestirmos, estejamos com isso satisfeito. Os que querem ficar rico caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos desordenados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, se desviaram da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos.

1 Timóteo 6.5-10

Já não existe mais uma noção simples pra definir o que seja o dinheiro. Hoje, o que pode ser entendido por dinheiro, seja como moeda ou como riqueza, guarda em si uma ideia complexa e quase não se pode mais contemplar essa palavra no vocabulário dos economistas. Ainda assim, o dinheiro é um fator significativo ao se tratar de uma vida econômica global, pois está inevitavelmente atrelado a jogos complexos de operações de produção, distribuição e consumo.
Mas nem sempre foi assim. Partindo de um período histórico, a Idade Média, por exemplo, o dinheiro não tinha tanta importância, pois não havia uma causa externa (o mercado, a propaganda) para estimular o interesse humano para o consumo. Assim, o dinheiro exercia um papel irrelevante na vida, no pensamento e nas preocupações dos medievais. Com o advento do capitalismo o “sabiá muda de canto”.
A partir do século XVIII em diante, e sobretudo no XIX, o mundo europeu já se encontrava em desenvolvimento econômico bem acelerado, onde a função do dinheiro tinha mudado radicalmente a vida das pessoas. O sistema capitalista, gradativamente sujeitou toda a vida, individual e coletiva, ao dinheiro e, sucessivamente, o Estado, a Igreja, a Educação, o Direito, a Arte, tudo passou a se submeter ao poder do dinheiro. Não se trata, certamente, de uma questão de corrupção — o que não deixa de ser evidente o fato de que todos se meteu a pensar através do dinheiro.
Apesar de ter uma relação afetiva com o conceito de esquerda, penso que o socialismo não nos apresenta uma alternativa. O socialismo hostiliza o capitalismo apaixonadamente, no entanto, não podemos ignorar uma história embaraçosa de autoritarismo, centralismo e dogmatismo que sempre floresceram na esquerda. O discurso tradicional encabeçado pela esquerda é que esses vícios seriam desvios que não teriam lugar em um “socialismo verdadeiro”. Acredito cada vez menos nisso, e cada vez mais na hipótese de que esses vícios são parte característico da própria esquerda.
Durante décadas o socialismo esmagou o homem na tentativa de domestica-lo para dar outra direção a sua natureza. Dessa forma, o socialismo retomou o que há de pior no capitalismo justificando como teoria, subordinando o homem não ao dinheiro ou aos capitalistas, mas a uma produção esmagadora. Se no capitalismo o fenômeno é o desaparecimento do ser pelo ter, no socialismo trata-se de uma supressão do ser pelo fazer e pelo ter coletivo. No final das contas, não conseguiram eliminar a paixão pelo dinheiro e a submissão do homem ao dinheiro.
Já não pode ser medida minha preocupação de que, na presente ordem, o homem é impelido a correr cada vez com mais intensidade atrás do dinheiro numa busca desenfreada pela felicidade material. Dentro desse cenário, dois grupos de pessoas merecem destaques: o primeiro são aqueles que caem na armadilha de serem possuídos por sua própria riqueza; o segundo são aqueles que não conseguem obter nenhuma fortuna, no entanto, são possuídos pelo próprio desejo de possuir — são escravos que não podem pagar o preço pela sua liberdade. O poder do dinheiro domina solidamente ricos e pobres.
De forma mais intrigante, ao assumir a frequente menção do liberalismo à “mão invisível” do mercado, não é estranho que se entenda isso como uma espécie de “potestade” — uma força que subjuga e se encontra alheia ao próprio homem. Dessa sorte o liberalismo se evidencia com configurações de uma religião convidando todos a viverem debaixo dos poderes de uma “mão invisível” que, particularmente, se manifesta sobre o signo do dinheiro.
Não é difícil de entender e, dado essa natureza, o indivíduo não dirige mais seu olhar ao papel ou moeda, mas apenas ao poder de compra. E aqui entramos num terreno um pouco nebuloso, pois o dinheiro é apreendido por sua categoria simbólica aproximando-se de sua realidade econômica, que se manifesta numa dimensão cada vez mais abstrata; apresentando-se com clareza inquestionável, trazendo tudo àquilo que oferece progresso material. Ora, em outra esfera, não podemos ignorar o rigor matemático adotado pela ótica neopentecostal: dinheiro=bênção. Aqui o dinheiro torna-se um valor espiritual em si. Sendo um valor em si, o dinheiro deixa de ser meio e se torna um fim; deixa de ter uma importância econômica para tornar-se um valor moral e um critério ético.
Nesta ciranda, correr atrás da grana é o mesmo que correr atrás do poder que ela representa de forma acumulada — ou seja, a riqueza. E é natural que aquele que se utiliza de qualquer tipo de poder tem por inclinação associar a este poder seu amor, e consequentemente sua esperança. Jaques Ellul afirma que:
A fome por dinheiro está entre os homens na forma de signo, como a aparência de uma outra fome; o amor pelo dinheiro não é mais que o signo de uma outra exigência. Fome de poder, de superação, de certeza, amor de si mesmo que se quer salvar, de tornar-se sobre-humano, de sobreviver e de eternizar. E qual o melhor meio além da riqueza para se chegar lá? Nesta busca alucinada, precipitada, não é apenas o prazer que o homem procura, mas a eternidade, obscuramente.
Como tal, Paulo adverte que aqueles que empreitam nessa caminhada caem em tentações, em armadilhas e em muitos desejos desordenados e nocivos; isso leva a um mergulho devotado à destruição, pois há uma coisa que o homem não pode se utilizar do dinheiro para comprar: a si mesmo. Hoje pedirão a tua alma, e tudo ao seu redor se desfalece, na incapacidade de te salvar (Lucas 12:20); “De nada vale a riqueza no dia da ira divina” (Provérbios 11:4).
Jesus, que era bem mais atrevido que Paulo, não só nos alerta do perigo de correr atrás do dinheiro como também diz que este assume, diante do homem, a posição de um deus. Para Jesus, riqueza é Mamom: um ser que tem a presunção de ser adorado e servido. Nas considerações de Jesus, o dinheiro não é um objeto neutro e sem autonomia — vale lembrar que este é um episódio excepcional nos evangelhos, pois Jesus não costumava fazer personificações de objetos. E se o dinheiro não é neutro é porque se orienta por si mesmo, segue sua própria lei e se afirma na realidade como sujeito. Essa é uma característica do poder no sentido bíblico, seu paradoxo: o poder não é jamais neutro, ele é orientado e da mesma forma orienta os homens.
Não é de se surpreender que o rabi de Nazaré encare a ambição pelo lucro como um ato de adoração a esse deus, “porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. E continua nos advertindo: “ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6.24). A riqueza se projeta como deus porque preenche no homem, como um devaneio, seus desejos e ambições. É a busca por satisfazer esses anseios que orienta o homem a conferir toda importância ao símbolo; neste momento a riqueza se torna um fim em si. Destarte, é de extrema importância entender o paralelo que Jesus estabelece entre Deus e Mamom. Assim como entre o homem e Deus, a relação entre o homem e Mamom se constitui como uma relação entre um servo e seu mestre. Esta é uma realidade muito específica manifestada por Jesus.
Quando intuímos tudo isso com clareza pode-se perceber como o dinheiro sujeitou toda a vida ao seu domínio. Tudo pode ser comprado ou vendido, inclusive o homem: “Vocês vendem por prata o justo, e por um par de sandálias o pobre” (Amós 2:6). Como Ellul deixa claro, a moeda é somente uns dos meios de ação da potência do dinheiro, “o signo mais visível e concreto desta universalidade da venda”, onde o homem é posto de forma total à mercê dessas relações — a Bíblia é clara sobre o comércio de corpos e almas humanas (Ap 18:13). Essa dissolução interior do homem é enfática na traição de Judas como um ato pago. Porém, Jesus foi somente objeto da potência do dinheiro, mas nunca foi possuído por ela.
Desse modo, diferente do Antigo Testamento onde a riqueza era símbolo da glória de Deus, no Novo Testamento não há um verso sequer que justifique a riqueza — todos os ricos, e de forma mais clara no livro de Lucas, são aferidos com juízo. A riqueza não tem referência na pessoa de Jesus, assim como não tem também tudo que lembrava as ações de Deus no Antigo Testamento como os sacrifícios, o sacerdócio, o templo, etc. Jesus carrega em si toda a síntese do que essas coisas representavam. Em Jesus todas essas coisas foram suprimidas, porque ele é a representação máxima da riqueza de Deus para a humanidade.
O reino de Cristo é singular justamente porque não precisa da glória da riqueza para sustentar sua autoridade. O poder econômico e político são diretamente contrários à postura de Deus refletida em Jesus e seu modo de se dirigir ao mundo. Portanto, numa perspectiva cristã, o dinheiro é entendido apenas como uma coisa que possui um valor instrumental; ou seja, seu valor reside unicamente no fato de ser um meio para satisfazer o valor intrínseco.
O carpinteiro de Nazaré foi o principal patrocinador da ideia de que não precisamos nos preocupar com o dia de amanhã, que Deus provê os pássaros todos os dias e vestem os lírios com uma beleza magnifica, e que o valor que Deus dá a nós é inestimavelmente maior do que de aves e flores (Mt 6.25-34).
O concelho de Jesus era para não ajuntarmos tesouros terrenos, pois, traças e ladrões são atraídos para devorar e roubar impiedosamente tudo isso (Mt 6.19). O Mestre dizia que a vida de um homem não consiste na quantidade dos seus bens. Levando isso em conta, chama de insensato o empreendedor bem sucedido que deposita a sua segurança em seus bens acumulados (Lc 12. 15-20).
Para Jesus, assim como para Paulo, é a piedade com contentamento que é uma grande fonte de lucro, pois nada trouxemos a esse mundo e dele nada levaremos; por isso, meu amigo, tendo o que comer e com que nos vestirmos, estejamos com isso satisfeito.
©2016 Lindiberg Mustang

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O homem e a deformação da realidade

segunda-feira, 2 de março de 2015 Postado por Lindiberg Mustang
Vivo neste mundo como um estrangeiro em minha própria época; e é por este motivo que sou sucumbido por ele. Um indivíduo que pretende ser fiel à sua própria consciência em um mundo onde todos usam máscaras, com certeza será um incômodo para essa sociedade do espetáculo. Paulo Brabo diz que “Deus oferece aos santos dois destinos, não ser nada ou não ser compreendido”. No meu caso, fui acachapado com os dois.
Levando isso em conta, vez e outra alguém retruca: “Lindiberg, você diz essas coisas, mas, afinal, em que você acredita?” Uma pergunta válida e honesta que jamais poderia ser respondida em poucas linhas. Entretanto, minha vaidade não me permite ficar calado.
Sou cristão, e a pessoa de Jesus lança luz sobre tudo àquilo em que creio. Acredito na liberdade humana, em sua autonomia moral e intelectual, todavia, só em Jesus podemos ser de fato livres (Gl 5.1). Porém, em nossa liberdade escolhemos ser mais escravos do que de fato senhores de nós mesmos. A liberdade humana é o elemento central para entendermos a realidade circundante; somos livres dentro de nossos próprios limites.
Acredito na inerente corrupção humana herdada do “pecado original”. Somos seres inclinados ao caos, e somente através da supremacia da vontade humana sobre a condição humana podemos vislumbrar uma autêntica atitude revolucionária. Ou seja, foge de nossas possibilidades a capacidade de nos salvarmos. O problema consiste no fato de pouca gente ter entendido isso durante toda a História. O homem, sempre em algum momento dá um jeito de erguer seus “bezerros de ouro”: o dinheiro, o Estado, a tecnologia, a propaganda, o Mercado, tudo isso são produtos da ação humana, que se tornaram potências com suas devidas autonomias. Cada uma delas é independente, possuindo suas próprias leis; governam por si mesmas e sempre, sempre exigirão a total devoção do homem. Durante todas as épocas, sempre houve homens que depositaram sua confiança, segurança e sua esperança no Estado, no dinheiro, no Mercado, etc.
O homem deformou a realidade face a revelação de Deus, criando seus próprios deuses, sendo incapaz de construir com a ajuda exclusiva da moral, uma relação justa com o dinheiro ou qualquer uma das potências citadas. Potências que aniquilam a consciência, controlando ao mesmo tempo a organização objetiva da sociedade e o drama humano.
Todavia, nem a teologia, nem a Bíblia nos dão indicações que permitem decidir sobre a excelência de um sistema econômico ou de governo; não há uma doutrina política cristã. Ora, parece decepcionante não se possuir um sistema que corresponde à fé cristã; no entanto, Jacques Ellul salienta que “nenhum sistema pode nem corresponder a esta realidade nem organizá-la”. Isso porque o cristianismo em si é mais realista e cheio de substância que qualquer um dos três ou quatro sistemas que estão aí disponíveis, querendo estabelecer a organização da sociedade. A Revelação nos mostra qual é a realidade exata do homem e do mundo. E quando nos deparamos com essa Revelação, não encontramos uma filosofia, ou uma política e nem mesmo uma religião. Ellul conclui dizendo: “Nós encontramos um engajamento de um diálogo. Uma palavra pessoal que me é endereçada e que me interroga sobre o que eu faço, sobre o que eu espero e definitivamente sobre o que eu sou”. Somente neste entrelace que há a possibilidade de uma genuína liberdade.
Ora, se por um lado a Bíblia não nos fornece um sistema político ou econômico, por outro, a Revelação nos orienta a conviver com essas potências da maneira mais sóbria possível, sem se deixar escravizar por elas.
O homem escreveu sua própria história, criando seus próprios grilhões, sendo incapaz de se libertar. Shakespeare já nos avisou que a História é verdadeiramente uma narrativa contada por um idiota, é ruído e furor. A História está comprometida, o mundo está comprometido. É por isso que Deus penetra em nossa realidade, como o Filho do Homem, produzindo libertação e esperança na alma daqueles que nele confia; mostrando que a História não é um desenrolar mecânico de uma ordem preestabelecida. Não é pelas suas obras que o homem chega à liberdade; ele precisa ser liberto, precisa ser salvo. O verdadeiro sentido da história é a conclusão na liberdade. Somente Deus porá fim (e o homem terá sua participação) em toda desordem arquitetado pela obsessão humana; porá fim em toda potência que exige do homem adoração, e por fim, em todo engano lançado pelo Inimigo.
Claro, esta conclusão não nos deixa passíveis e confortáveis diante da realidade. Pelo contrário, nos comprometem e nos fazem entrar numa caminhada pessoal de resignação diante das configurações que sustenta o mundo (Rm 12.1). Dessa forma, não há nada mais imbecil do que a tentativa das instituições de santificar a sociedade, o Estado ou o dinheiro. Essa prática sempre se afunilou em desastre, pois o inimigo sempre será irredutível e impessoal; ou seja, o mundo continua mundo, o dinheiro continua dinheiro... A primazia do Evangelho, portanto, é exatamente mostrar essa realidade.

©2015 Lindiberg de Oliveira
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A precariedade humana

domingo, 27 de julho de 2014 Postado por Lindiberg Mustang
Rousseau foi o primeiro a lançar as bases da ideia de que “o homem nasce bom”: o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Ele, que foi chamado de o “filósofo da vaidade” por Edmund Burke, falou sobre o “estado de natureza” quase que com ares divinos, discorreu sobre a liberdade humana, sobre a família e a democracia; censurou a escravidão e qualquer possibilidade do homem ser propriedade do outro. No entanto, a sua ideia de que o homem nasce bom reforça o pensamento moderno de que, de fato, há certo progresso na própria natureza humana.
É inegável que haja um avanço tecnológico e científico, mas isso de forma alguma entra na esfera do humano. Todo esse progresso nada mais é do que o desenvolvimento de estruturas pré-estabelecidas de nossa civilização que conseguimos ampliar através de acúmulo de informações deixado pelos nossos antepassados. O ser humano continua o mesmo; não se pode dizer que o homem moderno é mais feliz, ou mais livre, ou mais justo que o homem medieval — acreditar nisso é ser solapado por uma débil ingenuidade.
É preciso explicar que Rousseau não está totalmente errado; a sociedade exerce uma função importante na corrupção do indivíduo: antes era o excesso de rigor, de controle, etc. Hoje o que estimula a perversão do homem é a publicidade, que o instiga ao consumo, a pornografia desenfreada, o espetáculo da violência que aumenta a delinquência e o ódio ao próximo, etc. No entanto, nem tudo vem da “sociedade”. No momento em que o homem se vê totalmente livre para definir seus caminhos, ele buscará, de alguma forma, dominar alguém ou alguma coisa, porque uma das principais características humana é a cobiça e desejo de poder.
Nesse caso, Hobbes foi mais categórico que Rousseau. Hobbes assumiu a precariedade humana, viu o estado de natureza humana como uma guerra de “todos contra todos”, e apesar disso, teve uma vida digna, honesta, foi um cidadão exemplar. Por outro lado, Rousseau foi o play boy vaidoso que enlouqueceu a mulher (péssimo marido), mandou todos os filhos para o orfanato (péssimo pai), mas se situava no discurso de que somos todos bonzinhos.
O homem vive o drama da “queda”, e o maior traço dessa tragédia é que suas paixões jamais podem ser aplacadas ou satisfeitas: o poder e a cobiça não podem ser saciados.  Por isso estou convencido de que esse fantasioso “progresso” não tem nenhuma prova como base — não há argumentos que corresponda à própria experiência real, e a maioria das pessoas que acreditam nisso é gente que sente mais prazer repetindo frases de efeito do que tendo um orgasmo. 
Há de se entender que não existe uma construção possível do mundo como pregam as ideologias socialistas, não há um modelo social de tal forma que o homem poderia ser menos maléfico, ou até mesmo menos infeliz. Não há uma garantia de que a qualquer momento possamos evidenciar uma Terceira Guerra Mundial ou a total decadência da civilização ocidental. Isso não quer dizer que não temos nada a fazer. Mas é preciso aceitar, antes de tudo, esse conflito e vivê-lo constantemente. Ter essa premissa como base — que não é de forma alguma uma ideia abstrata — é o meio mais viável para entender a realidade humana em todas as suas camadas, social, econômica, política, etc.
Não digo isso tendo como traços gerais a ideia de moralidade ou de “pecado”; tenho a História como aliada e minhas lentes nesta análise são puramente antropológicas. Ellul exprime isso de forma mais verdadeira do que nunca quando diz:
Todas as civilizações usaram de certa forma a opressão, mas elas deixavam a cada pessoa um amplo campo de liberdade e individualidade. O escravo romano e o servo medieval eram mais livres, mais autênticos, mais humanos socialmente (não digo mais materialmente feliz) do que o trabalhador moderno.
Ou seja, essa concepção de progresso é fake, uma ilusão, pois não tem competência para responder os questionamentos fundamentais da humanidade: quem sou eu? Em que consiste a felicidade? Por que o mal existe? O que é ser justo? As perguntas fundamentais de três mil anos atrás continuam sendo as mesmas hoje. Nós olhamos elegantemente para os medievais como se eles representassem algum tipo de atraso, e nós, no entanto, fôssemos detentores do avanço. Quanto engano! Ainda hoje não superamos os medievais na definição sobre “o que é o homem?” Algo muito atraente na Idade Média é a concepção de pecado e o modo como eram censurado os excessos humanos. Não é mais assim hoje. Essa compreensão que alguns têm de progresso é tão frágil que regredimos e achamos mais conveniente combater as coisas e não a ação humana: o problema não é a embriaguez, mas o álcool; não são os homicídios, mas as armas; não é a imoralidade, mas as músicas do Latino, etc. Uma doce ilusão que nos atrela, definitivamente, a inimigos imaginários.
Não há prova alguma de que o homem seja originalmente bom e que em algum momento da história houve uma “transição” para o homem atual. Nenhuma reeducação “política” deu conta desse desvio misterioso da raça humana. Pelo contrário, toda vez que usaram Marx para moldar o homem através das instituições políticas, explicando que, inevitavelmente, pela revolução e pelo jogo da dialética histórica a sociedade socialista surgirá da capitalista, a reeducação de vários países socialistas caiu em desvios monstruosos, mostrando sempre que o homem nunca saiu do lugar. Seguramente, Proudhon, foi bem mais claro e honesto quando afirma a supremacia da vontade humana sobre a condição humana, chamando o homem à luta contra a sua situação; essa é a autêntica atitude revolucionária. Como disse Albert Camus: "A grandeza do homem consiste na sua decisão de ser mais forte que a condição humana".
Nossas paixões são como a força da gravidade: no momento em que paramos de bater as asas caímos. Qualquer fagulha de virtude só é possível através de um esforço antinatural, um bater de asas que não ignora nossa própria condição. O Novo Testamento dilata essa ideia com bastante originalidade, evidenciando a corrupção humana e a consciência como fator de mudança, por um lado, e o Espírito, como o verdadeiro agente de conversão, por outro. "Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Pois tenho desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo" (Rm. 7:18). É Paulo quem nos situa sobre uma guerra que há dentro de cada homem; uma guerra entre duas realidades, a do Espírito e a da carne.
Finalmente, esse esforço pessoal como movimento de consciência, só pode ser genuíno através do abraço da graça emanado pelo Eterno, que reconhece nossa fragilidade e decadência. Essa desordem da alma pode ser superada através do encontro com o Espírito, que em última instância revela nossa incapacidade, nossas limitações de dar sequer um passo à frente para um suposto progresso. Porque o Espírito é a luz que dissipa a escuridão e nos guia a esse ideal unitário através da variedade de suas expressões simbólicas e doutrinais, bem como nos faz reconhecer as próprias contradições da vida mesma. Essa é a postura do homem espiritual, que proporciona o indivíduo buscar a inspiração que o habilite a agir bem, independente das convicções reinantes na sua época ou em seu meio; que faz palavras como “liberdade”, “igualdade” ou “justiça” serem preenchidas com sua própria substância pessoal, adquirindo valor concreto pela nobreza dos homens que a representam, e não ideias gerais abstratas.

Lindiberg Mustang

O sentido do sofrimento

sexta-feira, 28 de junho de 2013 Postado por Lindiberg Mustang



"O que é a vida se não uma sucessão de fatos sem sentidos"? Essa foi a pergunta de uma jovem que golpeou Ed René Kivitz, deixando-o emudecido. Uma pergunta filosófica que desemboca numa questão teológica também. Na verdade a filosofia não tem uma resposta e qualquer teólogo honesto que se remete a uma reflexão não ousaria respondê-la de imediato. Ora, isso porque falar do sofrimento é falar da vida que se transpõe em grandes ambiguidades: a beleza que ela gera, a dor que se desenvolve durante os longos processos existenciais; enfim, a vida é semelhante uma roda gigante, ou a um pêndulo de um relógio: hora em cima, hora em baixo; hora de um lado, hora de outro.

Existe a beleza que gera sofrimento, o prazer que gera dor, a bondade que cria o caos, e também existe o oposto: a angústia que ascende à beleza, a aflição que se rompe em deleite, a agonia que gera o inexprimível, as lágrimas que viram poema, a morte que gera esperança. O segundo exemplo é mais complexo e o mais digno de uma reflexão por mais superficial que seja. Sempre me detenho sobre este assunto com algum fascínio, e é evidente que desde a antiguidade vários textos foram escritos em relação a esse tema e por pessoas bem mais confiáveis do que esse simples blogueiro corintiano que vos escreve.

Salomão, depois de uma cansativa observação da vida e da existência humana, é fadado a dizer que tudo é vaidade e que nada tem sentido. Tudo passa por cansativas repetições, e a fadiga e o tédio que isso causa não tem um propósito definido. Não ter propósito não quer dizer que não seja necessário. Nietzsche, que experimentou o peso deste assunto na própria pele, dizia que o sofrimento é necessário, e que o gênio que sobrevive ao sofrimento transcende aos conceitos morais desenvolvidos pela própria cultura. 

Suportar o sofrimento é convocar virtudes adormecidas que cultiva no caráter o vigor que faz romper a beleza escondida na frieza do coração, confirmando o que Kierkegaard diz sobre o poeta: "Uma pessoa infeliz que encobre profunda angústia em seu coração, mas cujos lábios são assim, onde suspiros e gritos passam sobre eles soando como uma bela música".

É dessa forma que alguns entenderão o sofrimento como o motor propulsor que gera o admirável. E isso não é coisa de Dr. House  aquela série do médico mal-humorado, arrogante e manipulador, que sempre opta pela agonia da solidão, pois só assim consegue ter sucesso em seus diagnósticos. Gente como Espinosa, Nietzsche, Kierkegaard e Tolstoi foram homens ébrios de Deus, no entanto confusos, mas que fizeram de seus sofrimentos uma capacidade criadora capaz de expressar e transmitir sensações incríveis, dando um novo tom à Filosofia e à Literatura. Foram homens que cultivaram beleza diante de suas lágrimas e conseguiram fazer brotar melodia perante a angústia do silêncio; o transtorno da rejeição foi transformado elegantemente em arte. Como disse Rubem Alves, “ostra feliz não faz pérola”. E não faz mesmo. A ostra só gera beleza se for acometido por um tumor, um tumor provocado por um grão de areia. Só há pérola se houver dor. As borboletas só podem enfeitar o jardim se passarem pela angústia da solidão e pelo isolamento esmagador dentro de um casulo. Sem casulo, sem borboleta.

Não é por acaso que a narrativa bíblica deixa claro que para haver redenção teve de haver morte. Sem a dor da entrega não haveria salvação para o mundo. Diante da dor a graça se manifestou através do Filho do homem, redimindo o mundo inteiro. E não se engane, caro leitor, o que mais doeu em Jesus não foi a dor física, mas o fato de ter carregado o mundo inteiro em seus ombros. Como disse Jacques Ellul: "não há um responsável pela morte de Jesus, não são os judeus ou os romanos: na medida em que Jesus foi justamente a Testemunha fiel, morreu por causa do pecado de todos os homens, o que significa que morreu pela mão de todos e, ao mesmo tempo, (o que são coisas indissolúveis) por todos".

Diante de tudo isso só me resta desconfiar incessantemente dos discursos que isentam o ser humano do sofrimento. “Pare de sofrer” não é uma proposta de Jesus, e nunca foi uma alternativa da vida. A dor é inerente ao homem e muitas vezes ela não tem sentido mesmo. Quando lemos Eclesiastes nos deparamos com um Salomão maduro, com uma idade avançada e com uma percepção aguçada da vida, dizendo que “na muita sabedora há muito enfado, e o que aumenta em conhecimento, aumenta em dor”. Por causa da opressão, Salomão diz que “os mortos, são mais felizes que os vivos, pois estes ainda tem que viver”. E essa é a angustiante e esclarecedora conclusão que o Eclesiastes chega em relação à vida: sem sentido, absurdo, vaidade.


©2013 Lindiberg Mustang
 


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Tecnologia é inútil para nossa sobrevivência

domingo, 2 de setembro de 2012 Postado por Lindiberg Mustang


É impressionante como conseguimos estabelecer conexões com absolutamente tudo ao nosso redor – e estou convencido de que este é a principal característica que nos diferencia dos animais. A tecnologia tem se mostrado um grande conector de relações, talvez o maior de todos eles – algo que eu tenho me relutado bastante para aceitar. A conexão é algo essencial para nós, o problema é que estamos montando uma relação patológica com o conector, ou seja, a tecnologia. Suas manifestações são várias, e necessidades – das mais banais as mais importantes – são criadas diariamente.  A verdade é que boa parte do que entendemos por tecnologia é inútil para nossa sobrevivência. Ela sempre foi, e continuará sendo, apenas um instrumento para alcançar nossos objetivos. Não o objetivo em si.
Em 2011 um grupo de empresários e profissionais de ponta aceitou passar uma semana desprovido de seus gadgets – celulares, notebooks, tablets, etc., – em um lugar remoto do estado americano de Utah. Os pesquisadores perceberam que estamos criando uma relação patológica com os aparelhos que nos cercam, não tão grave, mas semelhante às pessoas dependentes de álcool ou drogas. Estamos criando em nosso subconsciente a ideia de que nossos relacionamentos – amizades, contatos de trabalho, romances – dependem deles. A maioria das pessoas está começando a acreditar que não conseguimos mais viver sem eles. Há de muito tolo esse juízo, levando em conta que para nossa sobrevivência, a tecnologia é inútil e, em alguns casos, até mesmo prejudicial.
A internet, talvez hoje, seja o melhor conector de pessoas que conhecemos. E não é difícil chegar à conclusão de que a maiorias das relações feitas pela rede são superficiais, rasos e alicerçados na banalidade. Pessoas que preferem passar horas em frente de seus computadores navegando em redes sociais, postando frases para centenas de “amigos”, a sair com essas pessoas literalmente, prova que o uso abusivo da tecnologia está mudando negativamente nossos relacionamentos. E por esse motivo percebemos que a tecnologia nos isola, nos recolhe da companhia do outro.
Esse tipo de assunto parece meio clichê, mas, a verdade é que essa é a preocupação de muita gente séria. Passamos tanto tempo conectados numa constante expectativa de recebermos um simples texto como “oi”, “como você está?”, “bom dia”. Nosso apego por esses luxos a cada dia que passa está ficando maior e as frustrações decorrentes desse hábito estão começando a aparecer.
Ainda na década de 1970, Jacques Ellul, teólogo e filósofo francês (†1994), já demonstrava os efeitos catastróficos do uso desordenado da tecnologia, corroborando que nenhum tecnólogo é livre, e que há um conflito entre liberdade e tecnologia. Ellul dizia que aos poucos estamos sendo escravizados pela tecnologia; “estamos rodeados por objetos que são atrativos, que são eficazes, etc. Mas que não fazem sentido”.
Não acredito que é esse futuro que desejamos. Temos que encontrar uma solução inteligente para dosar nossas conectividades, e o modo de como usamos a tecnologia. Ora, quando desligamos nossos computadores e celulares, automaticamente começamos a nos sentir isolados, e isso não é porque estamos angustiados de fato. A tecnologia nos escraviza em certo sentido – e aqui não quero tirar o mérito dos benefícios que ela traz –, e nesse caso temos que correr para o lado oposto.
A força da tecnologia é selvagem e rebelde, e se tornou algo profanamente sagrado. O relacionamento com as pessoas era uma finalidade, mas hoje, essa distinção não é mais feita. É relutantemente inevitável que o melhor exemplo deixado para conexões saudável se encontra com o Rabi de Nazaré, que se conectava com todos, mas nenhum conector era mais importante do que a conexão, o que importava mesmo pra ele era as pessoas.
Jesus que tinha a própria natureza como ferramenta de seu trabalho e jamais se deixou deter por algo que não fosse simples e singelo. Compartilhava tudo com todos, tendo como conector as coisas mais imprevisíveis: o pão, o peixe, as lágrimas o vinho, a praia, o suor, o barco, um poço, uma tumba, a vida, a morte, os sorrisos, e até mesmo a Cruz. Sim a Cruz. Jesus não se relacionou com ela, mas através dela, o Filho do Homem se reconectou de vez com o mundo, e com cada partícula que nele se encontra. Ele nos deu exemplo do que é uma verdadeira rede social, na praia com seus discípulos; no monte, em meio a um sermão; no deserto, alimentando uma multidão; na beira de um poço, na companhia de gente de baixa moral; na última ceia, cantando, comendo e bebendo, celebrando o que de fato é comunhão.
©2012 Lindiberg de Oliveira