O dinheiro e sua não-neutralidade

quinta-feira, 30 de junho de 2016 Postado por Lindiberg de Oliveira
Muitos pensam que a piedade é fonte de lucro. De fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos a esse mundo e dele nada levaremos; por isso, tendo o que comer e com que nos vestirmos, estejamos com isso satisfeito. Os que querem ficar rico caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos desordenados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, se desviaram da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos.

1 Timóteo 6.5-10

Já não existe mais uma noção simples pra definir o que seja o dinheiro. Hoje, o que pode ser entendido por dinheiro, seja como moeda ou como riqueza, guarda em si uma ideia complexa e quase não se pode mais contemplar essa palavra no vocabulário dos economistas. Ainda assim, o dinheiro é um fator significativo ao se tratar de uma vida econômica global, pois está inevitavelmente atrelado a jogos complexos de operações de produção, distribuição e consumo.
Mas nem sempre foi assim. Partindo de um período histórico, a Idade Média, por exemplo, o dinheiro não tinha tanta importância, pois não havia uma causa externa (o mercado, a propaganda) para estimular o interesse humano para o consumo. Assim, o dinheiro exercia um papel irrelevante na vida, no pensamento e nas preocupações dos medievais. Com o advento do capitalismo o “sabiá muda de canto”.
A partir do século XVIII em diante, e sobretudo no XIX, o mundo europeu já se encontrava em desenvolvimento econômico bem acelerado, onde a função do dinheiro tinha mudado radicalmente a vida das pessoas. O sistema capitalista, gradativamente sujeitou toda a vida, individual e coletiva, ao dinheiro e, sucessivamente, o Estado, a Igreja, a Educação, o Direito, a Arte, tudo passou a se submeter ao poder do dinheiro. Não se trata, certamente, de uma questão de corrupção — o que não deixa de ser evidente o fato de que todos se meteu a pensar através do dinheiro.
Apesar de ter uma relação afetiva com o conceito de esquerda, penso que o socialismo não nos apresenta uma alternativa. O socialismo hostiliza o capitalismo apaixonadamente, no entanto, não podemos ignorar uma história embaraçosa de autoritarismo, centralismo e dogmatismo que sempre floresceram na esquerda. O discurso tradicional encabeçado pela esquerda é que esses vícios seriam desvios que não teriam lugar em um “socialismo verdadeiro”. Acredito cada vez menos nisso, e cada vez mais na hipótese de que esses vícios são parte característico da própria esquerda.
Durante décadas o socialismo esmagou o homem na tentativa de domestica-lo para dar outra direção a sua natureza. Dessa forma, o socialismo retomou o que há de pior no capitalismo justificando como teoria, subordinando o homem não ao dinheiro ou aos capitalistas, mas a uma produção esmagadora. Se no capitalismo o fenômeno é o desaparecimento do ser pelo ter, no socialismo trata-se de uma supressão do ser pelo fazer e pelo ter coletivo. No final das contas, não conseguiram eliminar a paixão pelo dinheiro e a submissão do homem ao dinheiro.
Já não pode ser medida minha preocupação de que, na presente ordem, o homem é impelido a correr cada vez com mais intensidade atrás do dinheiro numa busca desenfreada pela felicidade material. Dentro desse cenário, dois grupos de pessoas merecem destaques: o primeiro são aqueles que caem na armadilha de serem possuídos por sua própria riqueza; o segundo são aqueles que não conseguem obter nenhuma fortuna, no entanto, são possuídos pelo próprio desejo de possuir — são escravos que não podem pagar o preço pela sua liberdade. O poder do dinheiro domina solidamente ricos e pobres.
De forma mais intrigante, ao assumir a frequente menção do liberalismo à “mão invisível” do mercado, não é estranho que se entenda isso como uma espécie de “potestade” — uma força que subjuga e se encontra alheia ao próprio homem. Dessa sorte o liberalismo se evidencia com configurações de uma religião convidando todos a viverem debaixo dos poderes de uma “mão invisível” que, particularmente, se manifesta sobre o signo do dinheiro.
Não é difícil de entender e, dado essa natureza, o indivíduo não dirige mais seu olhar ao papel ou moeda, mas apenas ao poder de compra. E aqui entramos num terreno um pouco nebuloso, pois o dinheiro é apreendido por sua categoria simbólica aproximando-se de sua realidade econômica, que se manifesta numa dimensão cada vez mais abstrata; apresentando-se com clareza inquestionável, trazendo tudo àquilo que oferece progresso material. Ora, em outra esfera, não podemos ignorar o rigor matemático adotado pela ótica neopentecostal: dinheiro=bênção. Aqui o dinheiro torna-se um valor espiritual em si. Sendo um valor em si, o dinheiro deixa de ser meio e se torna um fim; deixa de ter uma importância econômica para tornar-se um valor moral e um critério ético.
Nesta ciranda, correr atrás da grana é o mesmo que correr atrás do poder que ela representa de forma acumulada — ou seja, a riqueza. E é natural que aquele que se utiliza de qualquer tipo de poder tem por inclinação associar a este poder seu amor, e consequentemente sua esperança. Jaques Ellul afirma que:
A fome por dinheiro está entre os homens na forma de signo, como a aparência de uma outra fome; o amor pelo dinheiro não é mais que o signo de uma outra exigência. Fome de poder, de superação, de certeza, amor de si mesmo que se quer salvar, de tornar-se sobre-humano, de sobreviver e de eternizar. E qual o melhor meio além da riqueza para se chegar lá? Nesta busca alucinada, precipitada, não é apenas o prazer que o homem procura, mas a eternidade, obscuramente.
Como tal, Paulo adverte que aqueles que empreitam nessa caminhada caem em tentações, em armadilhas e em muitos desejos desordenados e nocivos; isso leva a um mergulho devotado à destruição, pois há uma coisa que o homem não pode se utilizar do dinheiro para comprar: a si mesmo. Hoje pedirão a tua alma, e tudo ao seu redor se desfalece, na incapacidade de te salvar (Lucas 12:20); “De nada vale a riqueza no dia da ira divina” (Provérbios 11:4).
Jesus, que era bem mais atrevido que Paulo, não só nos alerta do perigo de correr atrás do dinheiro como também diz que este assume, diante do homem, a posição de um deus. Para Jesus, riqueza é Mamom: um ser que tem a presunção de ser adorado e servido. Nas considerações de Jesus, o dinheiro não é um objeto neutro e sem autonomia — vale lembrar que este é um episódio excepcional nos evangelhos, pois Jesus não costumava fazer personificações de objetos. E se o dinheiro não é neutro é porque se orienta por si mesmo, segue sua própria lei e se afirma na realidade como sujeito. Essa é uma característica do poder no sentido bíblico, seu paradoxo: o poder não é jamais neutro, ele é orientado e da mesma forma orienta os homens.
Não é de se surpreender que o rabi de Nazaré encare a ambição pelo lucro como um ato de adoração a esse deus, “porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. E continua nos advertindo: “ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6.24). A riqueza se projeta como deus porque preenche no homem, como um devaneio, seus desejos e ambições. É a busca por satisfazer esses anseios que orienta o homem a conferir toda importância ao símbolo; neste momento a riqueza se torna um fim em si. Destarte, é de extrema importância entender o paralelo que Jesus estabelece entre Deus e Mamom. Assim como entre o homem e Deus, a relação entre o homem e Mamom se constitui como uma relação entre um servo e seu mestre. Esta é uma realidade muito específica manifestada por Jesus.
Quando intuímos tudo isso com clareza pode-se perceber como o dinheiro sujeitou toda a vida ao seu domínio. Tudo pode ser comprado ou vendido, inclusive o homem: “Vocês vendem por prata o justo, e por um par de sandálias o pobre” (Amós 2:6). Como Ellul deixa claro, a moeda é somente uns dos meios de ação da potência do dinheiro, “o signo mais visível e concreto desta universalidade da venda”, onde o homem é posto de forma total à mercê dessas relações — a Bíblia é clara sobre o comércio de corpos e almas humanas (Ap 18:13). Essa dissolução interior do homem é enfática na traição de Judas como um ato pago. Porém, Jesus foi somente objeto da potência do dinheiro, mas nunca foi possuído por ela.
Desse modo, diferente do Antigo Testamento onde a riqueza era símbolo da glória de Deus, no Novo Testamento não há um verso sequer que justifique a riqueza — todos os ricos, e de forma mais clara no livro de Lucas, são aferidos com juízo. A riqueza não tem referência na pessoa de Jesus, assim como não tem também tudo que lembrava as ações de Deus no Antigo Testamento como os sacrifícios, o sacerdócio, o templo, etc. Jesus carrega em si toda a síntese do que essas coisas representavam. Em Jesus todas essas coisas foram suprimidas, porque ele é a representação máxima da riqueza de Deus para a humanidade.
O reino de Cristo é singular justamente porque não precisa da glória da riqueza para sustentar sua autoridade. O poder econômico e político são diretamente contrários à postura de Deus refletida em Jesus e seu modo de se dirigir ao mundo. Portanto, numa perspectiva cristã, o dinheiro é entendido apenas como uma coisa que possui um valor instrumental; ou seja, seu valor reside unicamente no fato de ser um meio para satisfazer o valor intrínseco.
O carpinteiro de Nazaré foi o principal patrocinador da ideia de que não precisamos nos preocupar com o dia de amanhã, que Deus provê os pássaros todos os dias e vestem os lírios com uma beleza magnifica, e que o valor que Deus dá a nós é inestimavelmente maior do que de aves e flores (Mt 6.25-34).
O concelho de Jesus era para não ajuntarmos tesouros terrenos, pois, traças e ladrões são atraídos para devorar e roubar impiedosamente tudo isso (Mt 6.19). O Mestre dizia que a vida de um homem não consiste na quantidade dos seus bens. Levando isso em conta, chama de insensato o empreendedor bem sucedido que deposita a sua segurança em seus bens acumulados (Lc 12. 15-20).
Para Jesus, assim como para Paulo, é a piedade com contentamento que é uma grande fonte de lucro, pois nada trouxemos a esse mundo e dele nada levaremos; por isso, meu amigo, tendo o que comer e com que nos vestirmos, estejamos com isso satisfeito.
©2016 Lindiberg de Oliveira

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