Dízimo, uma barganha justificada
quarta-feira, 16 de abril de 2014
Estava eu no mercado escolhendo
qual o tipo de presunto iria comprar e, por que tenho olhos, leio estampado
numa camisa a seguinte frase: “Dízimo, só falta você”. Não há limites para as loucuras neopentecostais e seus objetivos que distorcem a essência do Evangelho. Bem, digo isso pois a ênfase cravada nessa frase revela os seguintes critérios: I) dízimo é uma lei de
Deus, logo, deve ser uma prática para todos, ou seja, “só falta você”; II) quem
dizima é abençoado e próspero (isso sempre em um contexto financeiro), sendo
essa prática um símbolo de proteção contra o Devorador e sua turminha e III)
quem dizima contribui para obra de Deus, que é a manutenção do templo.
O fato dessa prática ter se tornado
um sacramento dentro dos arraiais evangélicos, faz com que esta seja uma das
principais marcas desse movimento - a ênfase nas contribuições é sempre pautada de forma muito genérica e vulgar. Sendo assim, o evangélico hoje, é
autenticamente reconhecido pela prática de dizimar. Não por virtudes como a oração, a devoção, ou a caridade. Não. Não dizimar faria da vida do cristão dos dias de hoje um fracasso, pois essa prática se tornou um símbolo de fidelidade, honra, e em última instância de intimidade com aquele que provê. Ora,
isso se torna algo funesto no momento em que entendemos que nenhum desses
pressupostos era uma verdade na Igreja Primitiva. O Novo Testamento nunca fez
do dízimo uma mensagem central, pois do contrário, a graça que orienta todo relacionamento entre Deus e os homens seria suprimida por uma relação de barganha. Portanto, essa prática nunca foi exigida por Jesus, ou
por Paulo, ou por qualquer um dos apóstolos.
A questão é a seguinte: de fato o
Antigo Testamento, sob a tutela da Lei, ordena que se entregue ao Senhor dez
por cento de toda renda de cada indivíduo; mas por outro lado, Jesus e o Novo
Testamento legitima, sem o menor temor, nada menos que tudo, e não apenas dez por cento. Note-se que quem é
justificado diante do rabi de Nazaré não são os dizimistas que dão das suas
sobras, mas sim uma viúva, que apesar de oferecer "duas pequeninas moedas,
da sua pobreza deu tudo que tinha" (Lc 21.4). Para Jesus, seguir a Lei sem
ser banhado pela graça é algo impressionante somente diante da vaidade de uma platéia, por isso ele diz: “vende tudo
que tens, dê aos pobres...”. A graça só é revelada quando há uma tomada de
consciência onde percebemos que tudo pertence a Deus. Não é uma exigência de Jesus que nos despojamos de todos os nossos bens, mas que haja a consciência de que tudo pertence ao Eterno. É uma atitude
espontânea, do contrário não seria graça.
A ideia de que quem dizima é
próspero financeiramente nunca foi uma verdade para a Igreja Primitiva. Imagine
um Deus que abençoa somente quem dizima e, para o cidadão que não o faz, ele simplesmente
manifesta sua indiferença permitindo que o Devorador e seus coleguinhas façam o
maior estrago em sua vida. Isso vai contra tudo o que é ensinado sobre o pai de nosso senhor Jesus Cristo. Esse Deus se assemelha bem mais ao demônio do que a
um pai amoroso que derrama sua graça sobre todos os homens. É esse o tipo de Deus que é cultuado por boa parte dos
evangélicos. A graça é suprimida e a benção é mais valiosa que o abençoador.
Nesse contexto de barganha, a paixão do homem pela benção, pelo ter, pelo dinheiro, é potencializada
gerando outro tipo de fome: fome de mérito, de superação, de amor de si
mesmo. Essa é a ideia embutida na frase “Dízimo, só falta você”. Nessa
brincadeira o dinheiro deixa de ser um valor econômico para tornar-se um valor
moral e, em última função, um critério espiritual.
A imagem passada de que o dízimo é
para a manutenção do templo se torna rudimentar no momento em que ela é apoiada
nas considerações do Antigo Testamento. Não há mais uma centralização
institucional onde o dinheiro deve ser depositado como resposta a uma lei de Deus. As doações na Igreja primitiva
serviam tanto para ajudar Paulo em sua divulgação do Evangelho, quanto para
prover os pobres. Não há registro de que essa prática era um hábito nos cultos.
Ao contrário, era uma decisão intuitiva gerada na consciência de cada um pelo
próprio Evangelho. Paulo escreve sobre isso na intenção de produzir essa
consciência. Hoje, os cristãos se orgulham por ser reconhecidos pela prática de
dizimar; na Igreja Primitiva, Tertuliano chegou mesmo a testemunhar a admiração
dos pagãos ao exclamarem, observando o comportamento dos cristãos: "vede, como eles se amam!" Ou seja, os cristãos eram
reconhecidos pela prática do amor, por serem graciosos com quem nada tinha, e não pela jactância de serem dizimistas.
©2014 Lindiberg de Oliveira
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