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O clima pós-moderno

quarta-feira, 22 de março de 2017 Postado por Lindiberg Mustang

Se alguém quiser saber o que se passa na presente fase da história humana chamada “era da incerteza” (uma ideia que permeia o mundo desde a metade do século 20), é obrigado a desenvolver uma habilidade que seja capaz de penetrar e discernir todas as camadas dos discursos pós-modernos — agora rebatizado de “pós-verdade”. Ortega y Gassete dizia que “cada época é como um clima, que predominam certos princípios inspiradores e organizadores da vida”. O período pós-moderno, que vive um momento de luto da razão como instância de significado, é responsável por dar (ou suprimir) sentido ou criar narrativas a toda concepção de mundo  enraizada em alguma certeza ou verdade: não há como ter certeza de nada porque tudo depende de nossa concepção subjetiva sobre a realidade. As pessoas discordam entre si e se dispõem de interpretações profundamente diferentes acerca do que significa viver neste mundo. Este é o princípio organizador de nossa época, nosso “clima”.
A ideia de pluralidade de percepções e de que cada indivíduo dá um significado circunstancial para o modo como olha a vida não é totalmente equivocado, e é coerentemente assentada na filosofia, na literatura, na política, na cultura, e também na teologia — um campo do conhecimento que ainda tenta conservar um status de pureza. Obviamente existe essa dimensão de incerteza da realidade fincada nos paradoxos e tão bem explorados por Nietzsche e Kierkegaard, mas essa concepção não contempla o todo da realidade; é apenas uma camada desta. Platão e Aristóteles captaram esta dinâmica da realidade, no entanto mergulharam mais fundo a ponto de vislumbrar uma unidade nisso tudo; não uma unidade simples, mas unidade do diverso, como em tudo que é real e vivente. Não chegaram a essa conclusão de modo vulgar, pela simples coerência lógica e mecânica, mas como uma tendência, uma disposição da própria diversidade a uma finalidade que tudo abrange.
Pensar o mundo como uma unidade não quer dizer que seja possível uma descrição total da ordem cósmica, pois este ato heróico está para além da estrutura da existência humana — nem mesmo a união de todas as religiões acompanhadas de todas as ciências poderia nos dar a condição de desenvolver uma descrição total da ordem cósmica. A realidade, senhoras e senhores, é formada por tempo, espaço e dimensões cosmológicas que fogem do nosso entendimento. Não obstante, mesmo com uma percepção fragmentada, é inegável não presumir que o Universo constitui alguma ordem que não depende do ser humano, pois é dentro dela que surge o homem; há, sem dúvida, elementos de desordem e de caos, contudo, esses elementos absurdos precisam estar presentes.
Quando não há a possibilidade de se emudecer diante da ordem cósmica, de calar e se abrir para o que existe efetivamente fora de nós, o que resta é profetizar o lamento relativista de que “o homem é que cria a realidade”. Ou seja, essa é aquela perspectiva kantiana de que o olhar é o que determina a imagema ideia de que vemos os objetos, por exemplo, no espaço e no tempo não porque espaço e tempo são partes do próprio mundo, mas porque são partes do nosso aparato humano para conhecerHegel critica essa concepção da epistemologia de Kant afirmando que o indivíduo é essencialmente definido pela capacidade universal da razão e não pela individualidade do sentimento ou da percepção dos sentidos, que isola o indivíduo da esfera objetiva. Ao definir razão, Hegel vai além, entendendo-a como o conjunto das leis do pensamento e criadora da realidade, isto é, o real é obra histórica da razão. Assim, podemos remontar o entendimento dos escolásticos cujo o esforço era alcançar a contemplação da verdade; a noção moderna, ao contrário, se desenvolve e alcança seu ponto de transição no pensamento de Marx com um convite para transformar a realidade — transformar o mundo.
Vale ressaltar que essa foi a tentativa de Marx, totalmente inoperante, de superar o subjetivismo moderno, negando a noção de que a História se move impulsionada por uma dialética que se dava no campo das ideias, como tinha dito Hegel. Marx trabalha com a ideia de que o homem é o homo faber, que descobre sua essência na práxis, fazendo, trabalhando, e não no interior de sua consciência. Na tradição marxista, qualquer reflexão sobre a realidade ou não realidade que se isola da práxis é uma perda de tempo e capricho de metafísicos.
Marx não descarta o componente dialético que move o mundo, no entanto, essa dialética não acontece no domínio das ideias como pensava Hegel, mas no mundo objetivo, entre o senhor feudal e seus servos, entre o patrão e o operário; a única dialética possível porque é fruto do agir humano. O problema é que Marx não chega nesta conclusão agindo objetivamente, trabalhando numa linha de produção ou participando de uma revolução, mas através de um esforço intelectual da própria imaginação; portanto, Marx tenta superar o subjetivismo operando exatamente no campo da subjetividade, tenta mudar o mundo através das conclusões de sua imaginação, antecipando, dessa forma, o que iria ser regra no pensamento pós-moderno.
Desse modo, guiada pela concepção pós-estruturalista — de que a realidade é considerada apenas como uma construção social e subjetiva, em perpétuo devir —, nossa época segue na impossibilidade de compreender o próprio drama em que vivemos.
A premissa básica para essa incompreensão é uma sinistra deformação da linguagem. A aquisição do domínio da linguagem é o elemento fundamental para que se consiga ser fiel a nossa experiência diante do mundo sem se deparar com a ideia posta de que tudo na vida pode ser mera alucinação. Ser fiel a experiência real evita que se reproduza na consciência apenas o que foi introjetado pela cultura e pela sociedade. Na maioria das vezes as pessoas absorvem valores que não correspondem a sua experiência direta, gerando uma cisão entre o indivíduo e sua experiência real. Ora, em todo caso, os elementos culturais nos ajudam a expressar para nós mesmos o que vemos no mundo; o problema é quando se decide em favor da cultura e não da individualidade. Os elementos culturais devem ser usados para as finalidades do indivíduo, servindo-o, caso contrário o indivíduo será assimilado por esses elementos tornando-se apenas um repetidor de frases de efeito, pensando a realidade sempre fora de sua experiência genuína.
O impacto disso é uma linguagem deformada geradora de um discurso que dificilmente alcança a compreensão dos fatos. Discurso é movimento, é transcurso de uma proposição a outra; é uma unidade formal organizada por premissas e conclusão. O discurso sempre deve estar ligado por algum nexo, seja ele lógico, analógico, cronológico, etc., que obviamente suscitará uma modificação no ouvinte por mais breve que seja — aceitar ou rejeitar um discurso é de alguma forma passar por uma modificação. Hoje, sob o clima da pós-modernidade, discurso foi reduzido a definições estranhas como: “dis-curso, desvio de curso”. Essa definição esquisita faz sentido dentro de uma ocasião oportunamente chamada de “pós-verdade”, onde a linguagem já não é mais capaz de expressar sua referência à experiência real.
O discurso, que hoje repousa à sombra de explicações pós-estruturalistas, e que se arrasta de Marx à Foucault — e de Foucautl à filósofos de 140 caracteres —, é incapaz de apreender o real, pois sempre aparece acorrentado a uma escolha ideológica (quando muito são discursos sobre textos que correspondem apenas a outros textos, descartando a experiência real). Assim, o subjetivismo moderno fez do relativismo a única experiência possível, e por isso mesmo é aceito como inquestionável o mantra que diz  que “todo discurso é ideológico e político”; uma ideia que joga no balaio tanto a oratória parlamentar quanto a poesia lírica, tanto uma notícia de jornal quanto o trabalho filosófico sobre metafísica, tanto o conselho moral de um pai para seu filho quanto o relatório de uma empresa a seus funcionários. Tratar as coisas dessa forma e dizer que “todo discurso é ideológico”, que “não há realidade sem ideologia”, é não saber o que é discurso, é não saber o que é realidade e menos ainda ideologia. É o típico mecanismo que reduz todos os discursos ao mesmo nível, sem uma hierarquia de valor; eis nivelamento que geme sob a bota do marxismo.
O problema dos marxistas de nosso tempo é que não leram Marx, que situou com muita precisão a ideologia como uma falsa consciência; uma ferramenta que deforma a realidade, colaborando para certa manutenção de relações de dominação. Ideologia é um pensamento total que tem por ambição explicar tudo de antemão, pois nada tem a aprender porque já sabe demais. Consequentemente, a realidade será mutilada e sempre ajustada ao discurso ideológico. Ora, a realidade não é ideológica, não depende da ideologia e muito menos de nós para ser o que ela é. A realidade, que é permanente, está fora de nós ao mesmo tempo que nos abrange, e como diz Heidegger, toda nossa orientação é guiada por ela, pelas coisas: “na irrupção do humano, nossas pesquisas confrontam as coisas”.
Se afastar de uma mente ideológica não significa abrir mão de nossas próprias perspectivas, e nem mesmo nos impede de assumir que a política pode ser compreendida de muitas maneiras — o que não implica aceitar todas as suas formas ou negligenciar nossas convicções em nome de uma suposta imparcialidade.
Assim, o sentido de ideologia, reinventado por Lênin e Gramsci, se converte numa concepção neutra que constitui qualquer ideário de um grupo de indivíduos. Como vimos acima, há uma tendência na pós-modernidade de mudar o sentido das palavras; se mudam o sentido das palavras a comunicação se torna impossível. Mesmo que se entre no plano de realidade do sujeito ideológico, a comunicação ainda se torna debilitada, pois o apelo à experiência é inútil, porque ele pode usar os mesmos nomes para designar os objetos da experiência, mas ele estará pensando outra coisa.
O sujeito ideológico ajusta a realidade ao seu próprio horizonte de consciência, como um alfaiate, que invés que ajustar o terno do cliente prefere lhe amputar o braço, adaptando a realidade às suas crenças. Ao contrário, é a realidade que nos orienta e, quando ela nos desampara, diz Heidegger: “o Nada nos encurrala, e, na sua presença, toda enunciação do ‘ser’ — tudo aquilo ao qual aplicamos o termo ‘é’ — se silencia”. A ideia aqui não é negar o relativismo, mas entender que este é apenas uma fina camada epidérmica da realidade, e não a totalidade do real. É apenas uma concordância prática, circunstancial, sem a dignidade de um genuíno ideal moral. E quando procura se adornar com uma ideologia autoglorificadora, que se justifica sobretudo como teoria "científica", os discursos mais bizarros se tornam deveras atraentes quando repousam em cabeças como de um Robespierre, de um Lênin ou de num Hitler.
Na cultura, as consequências são incalculáveis, pois ao excluir a moral e o direito natural os maiores absurdos da terra estariam legitimados em nome do relativismo; não haveria nenhuma razão pela qual se deva supor que um sujeito não possa ser morto por ter uma tendência homossexual, ou que um marido não possa bater na sua esposa: levando o relativismo às últimas consequências, qualquer condenação dependeria de fatores absolutamente contingentes.
Em um mundo onde o certo e o errado existem de fato, podemos afirmar com muita tranquilidade que os maridos não podem agredir suas esposas, que uma pessoa não pode ser assassinada por sua tendência sexual e etc. Não há como afirmar a imoralidade desses dois casos e rejeitar a moral. Esse é um paradoxo do qual determinadas filosofias pós-modernas nunca conseguirão escapar, pois elas vivem de ditar regras em cima de preceitos que elas próprias afirmam não existirem.
A pós-modernidade é nosso clima, frio, embaraçoso, insólito, disforme; é sob este clima que precisamos desenvolver uma habilidade que seja capaz de penetrar e discernir as camadas da realidade, tão ocultada pela neblina pós-moderna. Se enfrentada com honestidade, esta tensão será saudável, e a medida que se avança no cerco das ideias a melodia dramática consiste em manter sempre desperta a consciência dos problemas, que são o drama ideal.
Ao ultrapassar a neblina do relativismo pós-moderno, poderemos descer a assuntos mais imediatos, tão imediatos que se conflui com nossa própria vida, como dizia Ortega y Gassete: “a vida de cada um”. Mais ainda, quando se insiste em mergulhar por debaixo do que cada um costuma acreditar que seja sua vida, perfurando-a, vamos nos ingressar em regiões subterrâneas do nosso próprio ser, que permanecem secretas de tanto nos serem íntimas, por serem nosso ser.

©2017 Lindiberg Mustang

A consolação ilusória das multidões

quarta-feira, 23 de novembro de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
A cobiça, que é sem dúvida o desejo mais entranhado no homem, e a vontade de poder que dela decorre, são características genuinamente individuais que habita desde tempos pretérito o coração de cada um. Isso se confirma com clareza nas palavras do apóstolo, que diz: “cada um é tentado pela sua própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido” (Tiago 1:14). Dessa forma, esse mal só pode ser discernido individualmente a partir de um confronto aprofundado com o próprio ser, que reconhece na experiência interior a sedução e a cupidez que leva à desordem da alma.
Se por um lado a cobiça tem sua origem no indivíduo, por outro, é na coletividade que ela se legitima — é o corpo social que a exalta. Observamos na massa a totalidade dos indivíduos que produz um acréscimo de poder, no entanto, um corpo social sobrepuja esta expectativa dando um caráter desmedido em relação ao sujeito, e um sentido último, que constrange todo indivíduo e que faz com que somente o corpo social pareça autêntico.
É da coletividade que brota o espírito de poder mais alucinado, onde as consciências se diluem e, por isso mesmo, assumem um ar de verdade absoluta. Assim, a cobiça pessoal de cada indivíduo busca se justificar e se satisfazer numa via aberta para esse corpo social.
Jesus discerne com maestria essa dimensão da coletividade: “Ao ver as multidões, teve compaixão delas, porque estavam aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor” (Mateus 9:36). Nota-se que Jesus não trata com as multidões. Diante delas ele só exala sua compaixão e serenidade. O homem na multidão, envolvido nas massas, é inalcançável na medida em que abraça essa multidão na busca por uma consolação ilusória; a partir daí cria-se um mundo peculiar de sentimentos e tudo que se faz é reforçar esses sentimentos.
O indivíduo que se submete a uma massificação internaliza constantemente a ilusão de que continua indivíduo, mas não tem condições de afirmar a sua prerrogativa individual. Assim, a multidão é incapaz de expressar até mesmo uma visão de mundo — no máximo expressam uma intersolidariedade grupal. Esse delírio é nossa condição diante da proliferação demográfica e no inferno das cidades aplacado pelos discursos sobre democracia.
Dizia Chaplin que a multidão é um monstro sem cabeça, e Mateus 9:36 narra que Jesus encontra uma multidão aflita e exausta, sem nenhuma razão em si, nenhuma verdade, nenhuma mensagem, à mercê do primeiro louco, do mau pastor, do líder político, de um mito… Além da miséria contingencial que envolve as massas, Jesus se atenta justamente para esse potencial de horror quando as más autoridades tomam o controle. O povo ensandecido se inclina facilmente a lamber botas de autoridades, a erguer ídolos pra si, a prestar culto a salvadores da pátria. Freud dizia que a assustadora irracionalidade dos seres humanos emerge de grandes grupos e que as profundas forças libidinais de desejo (forças do amor) são entregues ao lider, enquanto os instintos agressivos (ódio) são dirigidos aos que estão fora do grupo (claro, há controvérsias sobre o conteúdo da explicação freudiana, mas na prática é justamente isso que acontece).
O Filho do homem não é mestre de multidões, não se torna líder delas; não se mete a dirigir o que é ingovernável (e esse é o elemento paradoxal que torna a massa mais facilmente domesticável), pois sabe que ao se colocar na liderança de uma multidão, efetivamente, faria com que cada homem se despojasse mais ainda de sua individualidade própria. Como afirmou Kierkegaard: “A multidão é a mentira. Cristo foi crucificado porque não queria se envolver com a multidão (ainda que ele se dirigisse a todos), mas queria ser o que ele era: a verdade que se relaciona com o indivíduo singular”. Caso contrário, a multidão seria reafirmada contundentemente em seu “estado de multidão”, inexistente e destituída de significado.
A máxima nietzschiana “nenhum pastor, um só rebanho”, é o último estágio do homem desolado. Mário Ferreira dos Santos comenta essa frase dizendo que nesse caso o líder é apenas a projeção da própria multidão: “O líder é líder porque segue à frente da multidão e a multidão segue-o porquê ele se coloca à sua frente. O líder é um produto da massa que se torna um rebanho sem pastor, porque não é conduzida. Na verdade, ela conduz o líder, que teme não ter acompanhantes. Esse é o estágio de que fala Nietzsche”.
O mecanismo básico das mentalidades das massas é irracional; a multidão não é guiada pelas mentes que a compõe, mas pelos seus instintos. Há inúmeras causas envolvidas nas decisões humanas, não somente entre indivíduos, mas principalmente entre os grupos. Qualquer informação bem colocada, principalmente quando associadas a alguma imagem estonteante, tocará as emoções irracionais das pessoas, dirigindo todo o comportamento das multidões — ao ponto de fazê-las apoiar uma guerra ou desejar uma coca-cola; tudo isso através de coisas irrelevantes que podem se tornar fortes símbolos emocionais. Ainda no século 19, Kierkegaard já entendia que “não há arte alguma em ganhar uma multidão; tudo o que é preciso é a não-verdade e um pouco de conhecimento das paixões humanas”. A publicidade, claro, foi um dos setores do mercado que melhor entendeu isso quando faz essa conexão emocional entre um produto ou serviço.
A mensagem do mestre de Nazaré desconstrói as bases de todo corpo social muito bem engajado. Por isso a boa nova de Cristo parece terrível para nós que vivemos nesta sociedade de massa, repetindo as mesmas coisas que o grupo está dizendo, arrolados nos mesmos sentimentos e facilmente mobilizados para determinada organização política, social, religiosa, etc. Neste sentido, as massas se tornaram a verdade, o poder e a honra, um tipo de deus — em suma, a ascensão do poder do “numérico” é a principal fonte do mal no mundo moderno, que se arrasta até nossos dias, desde Sócrates e Jesus, que foram vítimas do “numérico”, da “multidão”.
Presenciamos este fenômeno trágico onde cada conglomerado se reduz a um número, e se satisfaz em ser assim. O Evangelho é precisamente a Luz onde cada um pode encontrar sentido fora da massa, onde cada indivíduo pode discernir o caos dessa sociedade enlouquecida. Portanto, o famoso grito de protesto socialista que diz "trabalhadores do mundo, uni-vos!", não passa de uma armadilha dantesca para a consciência individual. Essa “união” não passa de uma adesão dissimulada a um espírito de manada, atraente para a alma covarde, no entanto, indigestível para aquele que sabe que lhe custará a supressão do fator Indivíduo.
Por isso, senhoras e senhores, os discípulos de Jesus são orientados não a enquadrar a multidão, mas dispersa-las, promovendo a vertigem da liberdade nas consciências mais corajosas.
Quem ousa realmente se levantar como uma testemunha da verdade não se abstém de atacar a multidão, pois é um componente indispensável para um profeta, um apóstolo, um mártir. Envolve-se, se possível, com todos, mas sempre individualmente, falando a cada pessoa, uma por vez, nas ruas, nos becos, como insiste Kierkegaard, a fim de dispersá-la.


©2016 Lindiberg Mustang

Fé e razão, entre a loucura e a inteligência

sábado, 7 de maio de 2016 Postado por Lindiberg Mustang
Entendo a fé como o maior de todos os saltos; um salto para as camadas mais profundas da existência na angustiante tentativa de criar uma abertura no universo para tocar o infinito. Louis Lavelle declara que isso é uma dialética permanente a unidade da autoconsciência. Uma experiência tão cheia de sentido que suprime qualquer hiato entre a realidade e a idealidade.
Assim, é um erro compreender a fé como um mero símbolo de barganha para conseguir os favores de Deus. Os cristãos abandonaram o sentido — e consequentemente a experiência — existencial da fé contida nas Escrituras, assimilando-a a ajuntamentos cada vez maiores nas igrejas, todos orientados na mesma direção e arrolados no mesmo engano; transformaram a fé em sinônimo de conquistas financeiras, numa relação de posse e egoísmo, de obediência aos usos e costumes, aos dogmas, quando na verdade é o oposto disso; ou seja, uma viagem para as determinações mais profundas da existência tendo exclusivamente a implicação do encontro com o Eterno. Trata-se não só de seguir uma verdade, mas de experimentá-la, e vive-la até as últimas consequências.
Lavelle nos faz entender que essa não é uma experiência permanente  é rápido e embaraçoso; "são momentos privilegiados que parece que o Universo se ilumina e afigura-se como se nós mesmos tivesse escolhido nosso destino; depois o Universo volta a se fechar e logo tornamo-nos novamente solitários e miseráveis". Portanto, a sabedoria consiste em fazer permanecer em nossa memória esses momentos paradoxais e construindo sobre eles a trama da nossa existência quotidiana, e por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito.
A confusão em apreender a fé reside em confundi-la com crença. Ellul, que faz uma lúcida distinção entre fé e crença, me convenceu de que crenças são meras insígnias e práticas que no final apenas atrapalha o grande passo para a fé. A crença turva nossa percepção de Deus transformando-o num ídolo, isto é, numa força a ser manipulada e temida. A fé, como deixa claro Kierkegaard, “é um incrível paradoxo capaz de transformar um crime em um ato santo agradável a Deus; paradoxo que não pode ser reduzido a qualquer raciocínio, pois principia exatamente onde termina a razão”. Dessa forma, Kierkegaard relaciona a fé à maior paixão humana, “uma relação absoluta com o Absoluto”.
Quem abraça a fé abraça também o desconforto, a insegurança e a dúvida, pois é um movimento que o deixa sozinho com um Deus que talvez pode não estar lá. Logo, a razão não serve mais como um guia, porque ainda está emaranhada pelos limites estabelecidos da cultura e da sociedade. Abraão não se deixou levar pelos elementos culturais ou os valores éticos de sua época ao decidir sacrificar seu próprio filho. O pai da fé se lançou de imediato em direção ao paradoxo da vida. Por amor a Deus, e de modo idêntico, por amor a si mesmo.
A fé é um milagre e ninguém está excluído dela, entretanto, não é conveniente dizer que os filósofos gregos deram o salto da fé. Porém, podemos acatar o esclarecimento de Eric Voegelin, que afirma que através de uma ordem noética os gregos tiveram o salto no ser. Sócrates fez o movimento infinito sob o critério intelectual, puramente cognitivo. Neste caso, a razão se torna a simples tendência da inteligência humana em direção ao fundamento, ou seja, a ordem divina. Para Platão, a realidade não pode ser desprovida de um alicerce transcendente, pois seria impossível pensar logicamente sem as determinações dos princípios universais. Isso é importante, e chegar aonde eles chegaram já é uma tarefa bastante elevada para as forças humanas; contudo, não seria possível abrir essa perspectiva sem o toque divino.
Os gregos entendiam a razão como o espírito, portanto, tudo que daí procede já nasce fechado para os limites da razão. Logo, a fé proposta pelo Evangelho, para eles era filosoficamente loucura, um suicídio intelectual. Platão e Aristóteles foram aos limites da razão na tentativa de esclarecer a realidade conceitualmente, através de definições e explicações. Segundo esse modo de encarar o mundo é possível dissecar a realidade a partir de um refinamento constante dos conceitos de que trata, tendo sempre a razão como a ferramenta que baliza e orienta o indivíduo na busca da verdade.
A questão é que o Evangelho estabelece um novo sentido para o que seja a verdade; eis a grande loucura do Evangelho: a verdade não pode ser depurada, corrigida, não pode ser dividida ou sequestrada pela retórica, pois não se trata de um conceito e sim de uma Pessoa. Não se trata de aderir a uma “doutrina cristã”, mas de confiar numa pessoa que se comunica com você. Então, não há outro modo de compreender e discernir a verdade a não ser através da fé. Por isso Paulo nos guia a seguir a verdade em amor; ou seja, trata-se seguir a verdade, e não de adotar um sistema de doutrinas ou teorias obcecadas pela perfeita formulação conceitual. Seguir a verdade é o mesmo que “seguir Jesus” — e viver todas as consequências dessa escolha.
Ainda assim, é preciso deixar claro que o salto da fé não exclui a razão, não é um movimento irracional preenchido de uma realidade abstrata. A fé assimila a razão formando uma unidade na consciência, reconhecendo o Definitivo em sua verdade incontestável. Portanto, a fé é a presença cada vez mais clara da realidade, não aceita nada imposto de fora; encara tudo com a máxima seriedade em face daquilo que é permanente, da eternidade, e em última instância, daquilo que é decisivo. Tudo que é transitório será olhado à luz do que é definitivo.
Diante disso temos duas escolhas: aceitar o refúgio da crença como um escape da realidade, como consequência da nossa busca natural por proteção, ou ser inundado pela fé e viver como um andante na existência, e não como um pedestre.
©2016 Lindiberg Mustang
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A morte de um rebelde

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015 Postado por Lindiberg Mustang
No leito de sua morte, Kierkegaard foi convidado a receber a Sagrada Comunhão; um costume dentro do luteranismo. Ao que ele responde: “Sim, mas não a partir de um pároco, a partir de um leigo”. Kierkegaard foi comunicado que seria difícil seu pedido ser atendido. "Então vou morrer sem ele”, retrucou. Com insistência, lhe disseram que aquilo não era certo. Ao que respondeu Kierkegaard: "Quanto a este ponto, não pode haver nenhum argumento, eu fiz a minha escolha. Pastores são funcionários do rei, os oficiais do rei não tem nada a ver com a cristandade”.
Kierkegaard foi um rebelde; um incrível abusado que torcia o narigão para as instituições eclesiásticas que, assim como hoje, se embeveceram com o vinho produzido pelo Estado, pelo lucro e por uma tradição duvidosa. Viu no cristianismo de sua época uma estranha e sufocante atmosfera que reduzia a fé em meras crenças asmáticas de fôlego reduzido.
O extremo desconforto de Kierkegaard aumentou sua popularidade, especialmente entre os acadêmicos, que não ignoraram seu desejo de não ter seu funeral em uma basílica. Houve protesto, o funeral foi interrompido e suas convicções religiosas radicais foram proferidas durante o enterro, deixando o deão presente enfurecido. Depois disso, o rebelde foi descido ao seio gelado da terra.

©2015 Lindiberg Mustang

O mundo e suas fábricas de ilusões

sexta-feira, 29 de agosto de 2014 Postado por Lindiberg Mustang
Nossa época é marcada, como diz Bauman, pela liquidez da realidade. Não vejo definição melhor. O homem contemporâneo, vaidoso de suas tecnologias e conforto, é um “cadáver ambulante”, uma mascara, onde existir se torna autenticamente um fardo pesado. Como ser livre é angustiante, as pessoas preferem deixar-se guiar pelas ocasiões aleatórias que se apresentam; o efêmero, o transitório e o acidental tornam-se precisamente a realidade imediata do homem moderno.
Ora, essa questão não é totalmente perceptível. Vivemos numa era onde mentir virou modinha, e a autoajuda faz isso muito bem; não acredite em algum “segredo”, ou “dez passos” para ser feliz, muito menos nos belos sorrisos das redes sociais. Falar a verdade é optar por caminhar sozinho, e por ser surrado sozinho também – poucas pessoas se sensibilizam quando ouvem a verdade. Por isso tento ser visceral quando escrevo. Decidi levar a filosofia a sério e, por isso, já estou sendo apontado como o “cara que faz as pessoas pensar no que elas não querem”. Expor nossas misérias é manusear uma espada de dois gumes; eu saio dilacerado tanto quanto àquele que me lê – a ironia custa caro, meu amigo.
A modernidade é habitada por prisioneiros da vaidade; somos escravos da técnica, da TV, da propaganda, da religião, das ideologias, do pastor, do padre, da Bíblia, do Estado, do Facebook, etc. O capitalismo, o mercado e o consumismo proveniente destes, nos faz correr sem parar. Mas correr pra onde? Isso ninguém sabe. Vivemos sem um telos (finalidade), os meios é que ditam as regras, "a mensagem é o meio" como diria McLuhan, e a ordem é: corra sem parar, porque se parar você pensa, e quem pensa sofre. Por correr, quero dizer: compre, consuma, seja feliz, deixe-se seduzir pela miragem das promessas do mercado, do dinheiro, do lucro, do progresso, etc. 
Essa é a doce ilusão de que o capitalismo vai transformar o mundo em um lugar justo, em que qualquer um pode enriquecer e ascender a uma escala social através de uma meritocracia. Por outro lado, tentar enxergar uma alternativa no comunismo é se inebriar na alucinação de que o Estado – esse ser impessoal, o qual Nietzsche chamava de “o mais frio dos monstros” – tem a capacidade de resolver nossos problemas. O Estado tem o domínio do seu corpo; o capitalismo, da sua alma.
Do jeito que as coisas andam só posso concluir que estamos caminhando para uma distopia, onde o Admirável mundo novo, de Huxley, seria semelhante a um conto de fadas. Uma distopia onde a revolta é inexistente; onde a revolução será apenas mais uma invenção de um produto que você vai desejar comprar; onde a esperança não passará de um mero conceito abstrato. Mas já não é mais tão interessante dizer que a vida não tem sentido e que o mundo não é um lugar seguro; isso não é uma novidade e já não abala mais ninguém. As pessoas descobrem isso até no supermercado quando vão fazer suas compras – aliás, as pessoas vão fazer compras justamente para suprir a falta de sentido.
Na verdade, o que me seduz é a possibilidade de ter esperança; a possibilidade de construir uma verdadeira comunicação, um vínculo graciosamente genuíno. Isso, hoje, é o verdadeiro milagre: estabelecer a graça como a base dos relacionamentos diante de um mundo onde o lucro é a medida de todas as coisas.
Apreender o mundo dessa forma, sendo guiado pela vibração da graça, não nos garante uma vida afortunada, no entanto, nos certifica de uma vida autêntica, onde o indivíduo começa por dar um mergulho em si mesmo, se construindo no âmbito da consciência, e não se diluindo na massa, no geral, na religião, nos partidos políticos, na militância ideológica, onde o excesso de comunicação atrapalha a verdadeira comunicação, pois transforma todos em bandos, em massa de manobra, em desordem existencial, culminando em uma abstração do sistema, o que para Kierkegaard seria “as orgias espirituais da filosofia contemporânea”.
Jesus, o Verbo, nos convida a superar essa falta de caráter de nossa época; nos atrai a caminhar na liberdade, a optar pelo que é eterno, pelo absurdo da fé, sustentando um rompimento com a “justiça” universal fechada numa moral onde o que prevalece é a culpa. Enfim, os discípulos de Jesus nos mostram que a vocação essencial do cristão não é sair vomitando doutrinas e regras a torto e a direito, mas denunciar todas as fábricas de ilusões, que geram desumanização – principalmente aquelas que se autolegitimam sagradas ou divinas. 
O reino de Deus é marcado por gente que abre mão dos seus direitos em favor dos que nada têm; é marcado pela dilatação da Esperança, que transcende a mera objetividade e conceitos abstratos sem sentido. O reino de Deus é de outra ordem e, com certeza se torna escândalo neste mundo. Não é por acaso que nosso mundo não é muito acolhedor com aqueles que amam e ousam questioná-lo – Francisco de Assis, Thoreau, Gandhi e Luther King que o diga.

©2014 Lindiberg Mustang

O desespero de ser livre

domingo, 25 de maio de 2014 Postado por Lindiberg Mustang
Deixe-me começar abrindo o jogo, meu caro: é muito comum sermos mal compreendidos naquilo que dizemos; esse é um embaraço que todo santo que ousa expor o que acredita terá de tolerar. Em se tratando do que eu escrevo, tento encarar com naturalidade aqueles que retrucam: “você não é claro no que diz”, “tem que explicar melhor aonde quer chegar” ou “até entendo o que você escreve, mas me mostre-me uma saída”. Não acredito que eu seja tão prolixo assim, mas esperar o que de um país em que as pessoas se adequam a cada dia a ler apenas frases de efeito no facebook.
A verdade é que não sou o cara do óbvio, das respostas prontas, dos sistemas bem elaborados — deixo essa proeza para a literatura de autoajuda, que já engole, a um bom tempo, milhares de cérebros preguiçosos Brasil a fora. Meu interesse, caro leitor, é colocar uma pulga atrás da sua orelha. Quero ser um incômodo para uma geração acomodada, e é por isso que resolvi estar diante do mundo como um irônico. Não tenho medo de ser incompreendido, ou receio de cair em contradição; ora, os grandes paradoxos são as grandes verdades. Nada disso é por acaso.
As pessoas não gostam de refletir sobre o que verdadeiramente importa. Quem para, pensa e quem pensa sofre. Refletir é um incômodo para as massas, e um pesadelo para aqueles que abraçaram a multidão. É sempre uma zona de conforto está em um lugar em que os outros pensem por nós, em que os outros ditem as regras. No mundo em que vivemos não faltam ambientes desse tipo: são as escolas com um sistema de ensino defasado e educadores que ainda apostam numa pedagogia que gera apenas imbecilóides em série; os políticos que insistem em nos manter alheios em relação à politica e o Estado babá que intervém nas dimensões mais íntimas de nossas individualidades; são as igrejas que fixam suas leis e persegue quem ousa cogitar sobre elas; Ou até mesmo a mídia e a publicidade que dita o que você deve comprar, vestir, comer, ouvir, etc.
É aconchegante viver assim, porque no final das contas sempre vai existir algo ou alguém para quem nós podemos transferir a culpa dos nossos medos, fracassos e perda. A lista conta com o Diabo, Deus, o sistema, o capitalismo, menos nós mesmos.
A liberdade nos assusta porque implicaria em sermos responsáveis pelos nossos atos, e poucos são os que têm cacife para isso. Levando isso em conta, não me assusta o fato de pesquisas mostrarem que até em 2004 o número médio de sessões psicanalíticas caiu pela metade. Uma sugestão clara de que os pacientes têm cada vez menos tempo – ou dinheiro – para os longos processos da psicanálise, em que o analisado é incentivado a descobrir sozinho suas fontes de angústia e as respectivas saídas. Freud deve estar se revirando no túmulo nesse momento.
Séculos atrás Kierkegaard já nos advertia do desespero da liberdade e da falta de volição das pessoas em se decidir por si mesmas. Pessoas assim são levadas a não se distinguir das outras, da massa e, por conseguinte, um desolador nivelamento toma o lugar. Esse nivelamento coletivo dilui a consciência individual fazendo o sujeito se confundir com a multidão. E para Kierkegaard, “a multidão é a falsidade”.
Paulo, o apóstolo, que caminhava sempre na liberdade seguindo os passos do seu mestre Nazareno, advertia que foi para a liberdade que Cristo nos libertou, não se submetam mais a um jugo de escravidão (Gl 5.1). O conselho de Paulo revela muito da inclinação humana de erguer ídolos pra si. A maioria das pessoas é como pássaros em gaiolas, que ao fugir por uma fresta, logo se depara que terá que ir atrás de seu próprio alimento para sobreviver; invés de comemorar a liberdade resolve voltar para a gaiola onde não precisará fazer esforço para encontrar comida.
É pertinente dizer que nossa sociedade é livre, mas, livre da liberdade, claro. Dizer que nossa sociedade é livre é a maior mentira de todas. São poucos os iluminados que mergulham na angustia da liberdade. Na maioria das vezes é preferível ser escravo de alguma trivialidade como o cigarro, o álcool, o pastor, o padre, o facebook, a ciência, Nietzsche, a Bíblia, do trabalho ou — por incrível que pareça — até mesmo do que eu digo.

©2012 Lindiberg Mustang