A consolação ilusória das multidões

quarta-feira, 23 de novembro de 2016 Postado por Lindiberg de Oliveira
A cobiça, que é sem dúvida o desejo mais entranhado no homem, e a vontade de poder que dela decorre, são características genuinamente individuais que habita desde tempos pretérito o coração de cada um. Isso se confirma com clareza nas palavras do apóstolo, que diz: “cada um é tentado pela sua própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido” (Tiago 1:14). Dessa forma, esse mal só pode ser discernido individualmente a partir de um confronto aprofundado com o próprio ser, que reconhece na experiência interior a sedução e a cupidez que leva à desordem da alma.
Se por um lado a cobiça tem sua origem no indivíduo, por outro, é na coletividade que ela se legitima — é o corpo social que a exalta. Observamos na massa a totalidade dos indivíduos que produz um acréscimo de poder, no entanto, um corpo social sobrepuja esta expectativa dando um caráter desmedido em relação ao sujeito, e um sentido último, que constrange todo indivíduo e que faz com que somente o corpo social pareça autêntico.
É da coletividade que brota o espírito de poder mais alucinado, onde as consciências se diluem e, por isso mesmo, assumem um ar de verdade absoluta. Assim, a cobiça pessoal de cada indivíduo busca se justificar e se satisfazer numa via aberta para esse corpo social.
Jesus discerne com maestria essa dimensão da coletividade: “Ao ver as multidões, teve compaixão delas, porque estavam aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor” (Mateus 9:36). Nota-se que Jesus não trata com as multidões. Diante delas ele só exala sua compaixão e serenidade. O homem na multidão, envolvido nas massas, é inalcançável na medida em que abraça essa multidão na busca por uma consolação ilusória; a partir daí cria-se um mundo peculiar de sentimentos e tudo que se faz é reforçar esses sentimentos.
O indivíduo que se submete a uma massificação internaliza constantemente a ilusão de que continua indivíduo, mas não tem condições de afirmar a sua prerrogativa individual. Assim, a multidão é incapaz de expressar até mesmo uma visão de mundo — no máximo expressam uma intersolidariedade grupal. Esse delírio é nossa condição diante da proliferação demográfica e no inferno das cidades aplacado pelos discursos sobre democracia.
Dizia Chaplin que a multidão é um monstro sem cabeça, e Mateus 9:36 narra que Jesus encontra uma multidão aflita e exausta, sem nenhuma razão em si, nenhuma verdade, nenhuma mensagem, à mercê do primeiro louco, do mau pastor, do líder político, de um mito… Além da miséria contingencial que envolve as massas, Jesus se atenta justamente para esse potencial de horror quando as más autoridades tomam o controle. O povo ensandecido se inclina facilmente a lamber botas de autoridades, a erguer ídolos pra si, a prestar culto a salvadores da pátria. Freud dizia que a assustadora irracionalidade dos seres humanos emerge de grandes grupos e que as profundas forças libidinais de desejo (forças do amor) são entregues ao lider, enquanto os instintos agressivos (ódio) são dirigidos aos que estão fora do grupo (claro, há controvérsias sobre o conteúdo da explicação freudiana, mas na prática é justamente isso que acontece).
O Filho do homem não é mestre de multidões, não se torna líder delas; não se mete a dirigir o que é ingovernável (e esse é o elemento paradoxal que torna a massa mais facilmente domesticável), pois sabe que ao se colocar na liderança de uma multidão, efetivamente, faria com que cada homem se despojasse mais ainda de sua individualidade própria. Como afirmou Kierkegaard: “A multidão é a mentira. Cristo foi crucificado porque não queria se envolver com a multidão (ainda que ele se dirigisse a todos), mas queria ser o que ele era: a verdade que se relaciona com o indivíduo singular”. Caso contrário, a multidão seria reafirmada contundentemente em seu “estado de multidão”, inexistente e destituída de significado.
A máxima nietzschiana “nenhum pastor, um só rebanho”, é o último estágio do homem desolado. Mário Ferreira dos Santos comenta essa frase dizendo que nesse caso o líder é apenas a projeção da própria multidão: “O líder é líder porque segue à frente da multidão e a multidão segue-o porquê ele se coloca à sua frente. O líder é um produto da massa que se torna um rebanho sem pastor, porque não é conduzida. Na verdade, ela conduz o líder, que teme não ter acompanhantes. Esse é o estágio de que fala Nietzsche”.
O mecanismo básico das mentalidades das massas é irracional; a multidão não é guiada pelas mentes que a compõe, mas pelos seus instintos. Há inúmeras causas envolvidas nas decisões humanas, não somente entre indivíduos, mas principalmente entre os grupos. Qualquer informação bem colocada, principalmente quando associadas a alguma imagem estonteante, tocará as emoções irracionais das pessoas, dirigindo todo o comportamento das multidões — ao ponto de fazê-las apoiar uma guerra ou desejar uma coca-cola; tudo isso através de coisas irrelevantes que podem se tornar fortes símbolos emocionais. Ainda no século 19, Kierkegaard já entendia que “não há arte alguma em ganhar uma multidão; tudo o que é preciso é a não-verdade e um pouco de conhecimento das paixões humanas”. A publicidade, claro, foi um dos setores do mercado que melhor entendeu isso quando faz essa conexão emocional entre um produto ou serviço.
A mensagem do mestre de Nazaré desconstrói as bases de todo corpo social muito bem engajado. Por isso a boa nova de Cristo parece terrível para nós que vivemos nesta sociedade de massa, repetindo as mesmas coisas que o grupo está dizendo, arrolados nos mesmos sentimentos e facilmente mobilizados para determinada organização política, social, religiosa, etc. Neste sentido, as massas se tornaram a verdade, o poder e a honra, um tipo de deus — em suma, a ascensão do poder do “numérico” é a principal fonte do mal no mundo moderno, que se arrasta até nossos dias, desde Sócrates e Jesus, que foram vítimas do “numérico”, da “multidão”.
Presenciamos este fenômeno trágico onde cada conglomerado se reduz a um número, e se satisfaz em ser assim. O Evangelho é precisamente a Luz onde cada um pode encontrar sentido fora da massa, onde cada indivíduo pode discernir o caos dessa sociedade enlouquecida. Portanto, o famoso grito de protesto socialista que diz "trabalhadores do mundo, uni-vos!", não passa de uma armadilha dantesca para a consciência individual. Essa “união” não passa de uma adesão dissimulada a um espírito de manada, atraente para a alma covarde, no entanto, indigestível para aquele que sabe que lhe custará a supressão do fator Indivíduo.
Por isso, senhoras e senhores, os discípulos de Jesus são orientados não a enquadrar a multidão, mas dispersa-las, promovendo a vertigem da liberdade nas consciências mais corajosas.
Quem ousa realmente se levantar como uma testemunha da verdade não se abstém de atacar a multidão, pois é um componente indispensável para um profeta, um apóstolo, um mártir. Envolve-se, se possível, com todos, mas sempre individualmente, falando a cada pessoa, uma por vez, nas ruas, nos becos, como insiste Kierkegaard, a fim de dispersá-la.


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