O homem e a deformação da realidade

segunda-feira, 2 de março de 2015 Postado por Lindiberg de Oliveira
Vivo neste mundo como um estrangeiro em minha própria época; e é por este motivo que sou sucumbido por ele. Um indivíduo que pretende ser fiel à sua própria consciência em um mundo onde todos usam máscaras, com certeza será um incômodo para essa sociedade do espetáculo. Paulo Brabo diz que “Deus oferece aos santos dois destinos, não ser nada ou não ser compreendido”. No meu caso, fui acachapado com os dois.
Levando isso em conta, vez e outra alguém retruca: “Lindiberg, você diz essas coisas, mas, afinal, em que você acredita?” Uma pergunta válida e honesta que jamais poderia ser respondida em poucas linhas. Entretanto, minha vaidade não me permite ficar calado.
Sou cristão, e a pessoa de Jesus lança luz sobre tudo àquilo em que creio. Acredito na liberdade humana, em sua autonomia moral e intelectual, todavia, só em Jesus podemos ser de fato livres (Gl 5.1). Porém, em nossa liberdade escolhemos ser mais escravos do que de fato senhores de nós mesmos. A liberdade humana é o elemento central para entendermos a realidade circundante; somos livres dentro de nossos próprios limites.
Acredito na inerente corrupção humana herdada do “pecado original”. Somos seres inclinados ao caos, e somente através da supremacia da vontade humana sobre a condição humana podemos vislumbrar uma autêntica atitude revolucionária. Ou seja, foge de nossas possibilidades a capacidade de nos salvarmos. O problema consiste no fato de pouca gente ter entendido isso durante toda a História. O homem, sempre em algum momento dá um jeito de erguer seus “bezerros de ouro”: o dinheiro, o Estado, a tecnologia, a propaganda, o Mercado, tudo isso são produtos da ação humana, que se tornaram potências com suas devidas autonomias. Cada uma delas é independente, possuindo suas próprias leis; governam por si mesmas e sempre, sempre exigirão a total devoção do homem. Durante todas as épocas, sempre houve homens que depositaram sua confiança, segurança e sua esperança no Estado, no dinheiro, no Mercado, etc.
O homem deformou a realidade face a revelação de Deus, criando seus próprios deuses, sendo incapaz de construir com a ajuda exclusiva da moral, uma relação justa com o dinheiro ou qualquer uma das potências citadas. Potências que aniquilam a consciência, controlando ao mesmo tempo a organização objetiva da sociedade e o drama humano.
Todavia, nem a teologia, nem a Bíblia nos dão indicações que permitem decidir sobre a excelência de um sistema econômico ou de governo; não há uma doutrina política cristã. Ora, parece decepcionante não se possuir um sistema que corresponde à fé cristã; no entanto, Jacques Ellul salienta que “nenhum sistema pode nem corresponder a esta realidade nem organizá-la”. Isso porque o cristianismo em si é mais realista e cheio de substância que qualquer um dos três ou quatro sistemas que estão aí disponíveis, querendo estabelecer a organização da sociedade. A Revelação nos mostra qual é a realidade exata do homem e do mundo. E quando nos deparamos com essa Revelação, não encontramos uma filosofia, ou uma política e nem mesmo uma religião. Ellul conclui dizendo: “Nós encontramos um engajamento de um diálogo. Uma palavra pessoal que me é endereçada e que me interroga sobre o que eu faço, sobre o que eu espero e definitivamente sobre o que eu sou”. Somente neste entrelace que há a possibilidade de uma genuína liberdade.
Ora, se por um lado a Bíblia não nos fornece um sistema político ou econômico, por outro, a Revelação nos orienta a conviver com essas potências da maneira mais sóbria possível, sem se deixar escravizar por elas.
O homem escreveu sua própria história, criando seus próprios grilhões, sendo incapaz de se libertar. Shakespeare já nos avisou que a História é verdadeiramente uma narrativa contada por um idiota, é ruído e furor. A História está comprometida, o mundo está comprometido. É por isso que Deus penetra em nossa realidade, como o Filho do Homem, produzindo libertação e esperança na alma daqueles que nele confia; mostrando que a História não é um desenrolar mecânico de uma ordem preestabelecida. Não é pelas suas obras que o homem chega à liberdade; ele precisa ser liberto, precisa ser salvo. O verdadeiro sentido da história é a conclusão na liberdade. Somente Deus porá fim (e o homem terá sua participação) em toda desordem arquitetado pela obsessão humana; porá fim em toda potência que exige do homem adoração, e por fim, em todo engano lançado pelo Inimigo.
Claro, esta conclusão não nos deixa passíveis e confortáveis diante da realidade. Pelo contrário, nos comprometem e nos fazem entrar numa caminhada pessoal de resignação diante das configurações que sustenta o mundo (Rm 12.1). Dessa forma, não há nada mais imbecil do que a tentativa das instituições de santificar a sociedade, o Estado ou o dinheiro. Essa prática sempre se afunilou em desastre, pois o inimigo sempre será irredutível e impessoal; ou seja, o mundo continua mundo, o dinheiro continua dinheiro... A primazia do Evangelho, portanto, é exatamente mostrar essa realidade.

©2015 Lindiberg de Oliveira
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