A precariedade humana

domingo, 27 de julho de 2014 Postado por Lindiberg de Oliveira
Rousseau foi o primeiro a lançar as bases da ideia de que “o homem nasce bom”: o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Ele, que foi chamado de o “filósofo da vaidade” por Edmund Burke, falou sobre o “estado de natureza” quase que com ares divinos, discorreu sobre a liberdade humana, sobre a família e a democracia; censurou a escravidão e qualquer possibilidade do homem ser propriedade do outro. No entanto, a sua ideia de que o homem nasce bom reforça o pensamento moderno de que, de fato, há certo progresso na própria natureza humana.
É inegável que haja um avanço tecnológico e científico, mas isso de forma alguma entra na esfera do humano. Todo esse progresso nada mais é do que o desenvolvimento de estruturas pré-estabelecidas de nossa civilização que conseguimos ampliar através de acúmulo de informações deixado pelos nossos antepassados. O ser humano continua o mesmo; não se pode dizer que o homem moderno é mais feliz, ou mais livre, ou mais justo que o homem medieval — acreditar nisso é ser solapado por uma débil ingenuidade.
É preciso explicar que Rousseau não está totalmente errado; a sociedade exerce uma função importante na corrupção do indivíduo: antes era o excesso de rigor, de controle, etc. Hoje o que estimula a perversão do homem é a publicidade, que o instiga ao consumo, a pornografia desenfreada, o espetáculo da violência que aumenta a delinquência e o ódio ao próximo, etc. No entanto, nem tudo vem da “sociedade”. No momento em que o homem se vê totalmente livre para definir seus caminhos, ele buscará, de alguma forma, dominar alguém ou alguma coisa, porque uma das principais características humana é a cobiça e desejo de poder.
Nesse caso, Hobbes foi mais categórico que Rousseau. Hobbes assumiu a precariedade humana, viu o estado de natureza humana como uma guerra de “todos contra todos”, e apesar disso, teve uma vida digna, honesta, foi um cidadão exemplar. Por outro lado, Rousseau foi o play boy vaidoso que enlouqueceu a mulher (péssimo marido), mandou todos os filhos para o orfanato (péssimo pai), mas se situava no discurso de que somos todos bonzinhos.
O homem vive o drama da “queda”, e o maior traço dessa tragédia é que suas paixões jamais podem ser aplacadas ou satisfeitas: o poder e a cobiça não podem ser saciados.  Por isso estou convencido de que esse fantasioso “progresso” não tem nenhuma prova como base — não há argumentos que corresponda à própria experiência real, e a maioria das pessoas que acreditam nisso é gente que sente mais prazer repetindo frases de efeito do que tendo um orgasmo. 
Há de se entender que não existe uma construção possível do mundo como pregam as ideologias socialistas, não há um modelo social de tal forma que o homem poderia ser menos maléfico, ou até mesmo menos infeliz. Não há uma garantia de que a qualquer momento possamos evidenciar uma Terceira Guerra Mundial ou a total decadência da civilização ocidental. Isso não quer dizer que não temos nada a fazer. Mas é preciso aceitar, antes de tudo, esse conflito e vivê-lo constantemente. Ter essa premissa como base — que não é de forma alguma uma ideia abstrata — é o meio mais viável para entender a realidade humana em todas as suas camadas, social, econômica, política, etc.
Não digo isso tendo como traços gerais a ideia de moralidade ou de “pecado”; tenho a História como aliada e minhas lentes nesta análise são puramente antropológicas. Ellul exprime isso de forma mais verdadeira do que nunca quando diz:
Todas as civilizações usaram de certa forma a opressão, mas elas deixavam a cada pessoa um amplo campo de liberdade e individualidade. O escravo romano e o servo medieval eram mais livres, mais autênticos, mais humanos socialmente (não digo mais materialmente feliz) do que o trabalhador moderno.
Ou seja, essa concepção de progresso é fake, uma ilusão, pois não tem competência para responder os questionamentos fundamentais da humanidade: quem sou eu? Em que consiste a felicidade? Por que o mal existe? O que é ser justo? As perguntas fundamentais de três mil anos atrás continuam sendo as mesmas hoje. Nós olhamos elegantemente para os medievais como se eles representassem algum tipo de atraso, e nós, no entanto, fôssemos detentores do avanço. Quanto engano! Ainda hoje não superamos os medievais na definição sobre “o que é o homem?” Algo muito atraente na Idade Média é a concepção de pecado e o modo como eram censurado os excessos humanos. Não é mais assim hoje. Essa compreensão que alguns têm de progresso é tão frágil que regredimos e achamos mais conveniente combater as coisas e não a ação humana: o problema não é a embriaguez, mas o álcool; não são os homicídios, mas as armas; não é a imoralidade, mas as músicas do Latino, etc. Uma doce ilusão que nos atrela, definitivamente, a inimigos imaginários.
Não há prova alguma de que o homem seja originalmente bom e que em algum momento da história houve uma “transição” para o homem atual. Nenhuma reeducação “política” deu conta desse desvio misterioso da raça humana. Pelo contrário, toda vez que usaram Marx para moldar o homem através das instituições políticas, explicando que, inevitavelmente, pela revolução e pelo jogo da dialética histórica a sociedade socialista surgirá da capitalista, a reeducação de vários países socialistas caiu em desvios monstruosos, mostrando sempre que o homem nunca saiu do lugar. Seguramente, Proudhon, foi bem mais claro e honesto quando afirma a supremacia da vontade humana sobre a condição humana, chamando o homem à luta contra a sua situação; essa é a autêntica atitude revolucionária. Como disse Albert Camus: "A grandeza do homem consiste na sua decisão de ser mais forte que a condição humana".
Nossas paixões são como a força da gravidade: no momento em que paramos de bater as asas caímos. Qualquer fagulha de virtude só é possível através de um esforço antinatural, um bater de asas que não ignora nossa própria condição. O Novo Testamento dilata essa ideia com bastante originalidade, evidenciando a corrupção humana e a consciência como fator de mudança, por um lado, e o Espírito, como o verdadeiro agente de conversão, por outro. "Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Pois tenho desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo" (Rm. 7:18). É Paulo quem nos situa sobre uma guerra que há dentro de cada homem; uma guerra entre duas realidades, a do Espírito e a da carne.
Finalmente, esse esforço pessoal como movimento de consciência, só pode ser genuíno através do abraço da graça emanado pelo Eterno, que reconhece nossa fragilidade e decadência. Essa desordem da alma pode ser superada através do encontro com o Espírito, que em última instância revela nossa incapacidade, nossas limitações de dar sequer um passo à frente para um suposto progresso. Porque o Espírito é a luz que dissipa a escuridão e nos guia a esse ideal unitário através da variedade de suas expressões simbólicas e doutrinais, bem como nos faz reconhecer as próprias contradições da vida mesma. Essa é a postura do homem espiritual, que proporciona o indivíduo buscar a inspiração que o habilite a agir bem, independente das convicções reinantes na sua época ou em seu meio; que faz palavras como “liberdade”, “igualdade” ou “justiça” serem preenchidas com sua própria substância pessoal, adquirindo valor concreto pela nobreza dos homens que a representam, e não ideias gerais abstratas.

Lindiberg de Oliveira